Livro debate o fazer tradutório com ensaios de tradutores brasileiros

Escritores como Monteiro Lobato, Clarice Lispector, Silviano Santiago e Millôr Fernandes também discutem o tema

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Por Dirce Waltrick do Amarante
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Palavra de Tradutor: Reflexões sobre Tradução por Tradutores Brasileiros contém 12 ensaios sobre tradução, escritos ao longo de quatro séculos (18 a 21), de modo que se pode concluir que as reflexões acerca da atividade não são novas por aqui. O volume bilíngue (português/inglês) permite ainda que essas importantes reflexões possam ser conhecidas fora dos países de língua portuguesa; essa é, aliás, a intenção das organizadoras do livro, Andréia Guerini e Marcia Martins, duas acadêmicas que têm se dedicado aos estudos da tradução há bem mais de uma década. A seleção dos textos apresenta um panorama variado da concepção do fazer tradutório de obras ficcionais, quer na área do teatro, da prosa, da poesia, da literatura infanto-juvenil, quer na da autotradução. Assinam essas reflexões tradutores renomados como Monteiro Lobato, Clarice Lispector, Millôr Fernandes, Barbara Heliodora, Haroldo de Campos, Paulo Henriques Britto, ao lado de outros menos conhecidos, mas com sólido trabalho na área.

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Para o escritor Silviano Santiago, a tradução é uma decisão de leitura por parte do tradutor Foto: Marcos de Paula/Estadão

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O livro, que segue a ordem cronológica, começa com um texto de Manuel Jacinto Nogueira da Gama, Discurso do Traductor, publicado no ano de 1798 (cabe ressaltar que as organizadoras optaram por manter a ortografia da época e a tradução do texto para o inglês precisou atender a essa especificidade). O ensaio de Nogueira da Gama, um nobre brasileiro de Minas Gerais que estudou matemática e filosofia na Universidade de Coimbra, em Portugal, alerta para a importância da tradução no Brasil, uma vez que ela facilitaria o conhecimento vindo de outras nações, principalmente nas áreas de “Letras, Ciência e Artes”, permitindo que “nos conservaõ ao nivel de todas as Nações cultas, e sabias”. Conclui: não é possível conceber “hum homem sabio sem o socorro das idéas dos seus antepassados, e dos seus coevos” e, uma vez que a diversidade de línguas é imensa, o trabalho de tradução é essencial. O que pode soar um lugar-comum hoje em dia, nos faz pensar que no fim do século 18 a tradução ainda era uma atividade em desenvolvimento no Brasil, embora já bastante recorrente na Europa, como ele frisa em seu ensaio. 

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As reflexões de Monteiro Lobato sobre tradução vêm em forma de cartas enviadas para o escritor e tradutor Godofredo Rangel. Nelas, o pai da boneca Emília defende a ideia de que a tradução para crianças deve ser clara e de certa forma facilitada. Lobato não se furta a admitir que, para que isso aconteça, pode-se até “melhorar o original”. A respeito da tradução da obra de Shakespeare, aconselhou Rangel a usar uma linguagem simples e direta e não se amarrar “ao original em matéria de forma – só em matéria de fundo”.

A ideia de Lobato parece ir de encontro à de Barbara Heliodora. Para a renomada tradutora de Shakespeare, a tradução da obra dramática desse autor não deveria ser apenas “encenável” e fluente para os atores; ela deveria, antes de tudo, ser a “mais fiel possível à forma original das peças”, em versos, a qual é “uma parte essencial do que as faz serem amadas e admiradas há séculos”.

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A respeito da tradução de textos dramatúrgicos, Clarice Lispector conta a experiência de traduzir peças com a jornalista Tati de Moraes e recorda que os diretores costumavam interferir, na maioria das vezes positivamente, nas traduções delas. Mas houve uma vez que se sentiram incomodadas. Na tradução de uma peça de Tchekhov, o diretor tentou substituir a palavra “angústia” por “fossa” para facilitar a comunicação com o público: “Ora, nós duas discordávamos: um personagem russo, ainda mais daquela época e ambiente, não falaria em fossa. Falaria em angústia e em tédio destruidor”. Clarice e Tati preferiam se manter fiéis ao texto a sucumbir à sua mera simplificação. 

João Ubaldo Ribeiro relata um caso especial: a dificuldade de se autotraduzir, como o fez com Sargento Getúlio, livro que ele levou mais tempo para traduzir para o inglês do que para escrever em português. 

Diz Silviano Santiago que a tradução é uma decisão de leitura por parte do tradutor; contudo, no que tange à poesia, ele deve cuidar para que sua interpretação não elimine o “potencial polissêmico que existe em todo poema”. Millôr Fernandes concorda: “O tradutor não pode – por má interpretação ou incompetência – explicitar aquilo que o autor quer deixar implícito, esclarecer aquilo que ele quer deixar misterioso.”

Sobre a fidelidade na tradução de poesia, Santiago afirma que nela “tudo é hipótese, aproximação, desacerto com acerto e até mesmo acerto sem acerto, transgressão com pedido de perdão e, finalmente, posse sem direito autoral”. Paulo Henriques Britto arremata: “Aqui, como em tantos outros casos em tradução literária, nenhuma solução é inteiramente satisfatória”.

Diz Millôr Fernandes: “Não se pode traduzir sem ter uma filosofia a respeito do assunto”. Essa antologia é a prova concreta dessa afirmação. 

Por fim, vale lembrar que para que esse volume fosse bilíngue, as organizadoras contaram com a ajuda, obviamente, de uma equipe de tradutores.  *Dirce Waltrick do Amarante é tradutora, entre outros, de James Joyce, Edward Lear, Eugene Ionesco e Gertrude Stein

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