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Livro defende tese da influência do uso de drogas no regime nazista

'High Hitler', do jornalista alemão Norman Ohler, criou polêmica ao relacionar drogas e nazistas

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O jornalista alemão Norman Ohler Foto:

O jornalista e escritor alemão Norman Ohler diz em seu livro High Hitler, que acaba de ser lançado no Brasil, que “a historiografia nunca é apenas ciência, mas também ficção”. Talvez seja por isso que Ohler decidiu extrapolar os limites historiográficos da documentação de que dispunha para escrever sua controversa obra, cujo título nacional faz um trocadilho com a saudação nazista obrigatória no Terceiro Reich alemão, Heil Hitler, substituindo parte dela pela palavra high, que em inglês designa a condição de quem está sob efeito de drogas.

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O subtítulo do livro em português – Como o Uso de Drogas pelo Führer e pelos Nazistas Ditou o Ritmo do Terceiro Reich – dá a dimensão da pretensão de Ohler. O jornalista procura demonstrar, ao longo de mais de 300 páginas, que drogas como a metanfetamina foram determinantes para o comportamento dos alemães durante o regime nazista, e em particular para estimular os soldados alemães no front. Mais do que isso: Ohler tenta emplacar a tese de que Hitler estava sob efeito de drogas quando tomou algumas de suas decisões mais importantes.

Pouco importa se, ao final do livro, Ohler dedique alguns parágrafos para ponderar que, “se a tese central é a de que as drogas no Terceiro Reich foram usadas como potencial de mobilização artificial, para compensar a motivação diminuída com o tempo e manter uma classe dominante capaz de funcionar, precisamos salientar que esse capítulo mais sombrio de nossa história não descarrilou de tal forma só por causa do consumo de muitas substâncias que provocavam dependência”. O escritor concede que as drogas, afinal, “apenas fortaleceram o que já estava destinado”.

A leitura de High Hitler mostra que essa ponderação, além de tardia, é claramente insuficiente. Parece ter sido colocada ali com o único objetivo de se antecipar às previsíveis críticas sobre os métodos e as conclusões de Ohler, pois todo o resto do livro desmente a cautela daquele punhado de frases. Ohler entusiasmou-se com os documentos que encontrou e, movido pela ânsia de formular uma explicação plausível para um período tão vergonhoso da história de seu país, uma explicação que fosse boa o bastante para evitar os constrangedores questionamentos sobre o comportamento dos alemães, criou a tese de que seus compatriotas se transformaram em genocidas porque estavam baratinados.

Não se nega a riqueza dos documentos explorados por Ohler, em especial as anotações do médico pessoal de Hitler, Theodor Morell, que receitava ao Führer doses crescentes de todos os tipos de drogas causadoras de euforia. Também aparecem relatórios sobre o fornecimento das mesmas drogas aos soldados alemães no front.

Contudo, também não se pode negar que drogas e álcool sempre foram partes integrantes do esforço de guerra. O sociólogo alemão Norbert Elias chamou a atenção para isso em seu livro Os Alemães, em que destaca o papel importante do álcool para os soldados alemães na Primeira Guerra. A partir da análise da literatura de guerra de Ernst Jünger, Elias comenta que, “através do encorajamento mútuo, do consumo de álcool e da autoestima para gerar um estado de ânimo de extrema fúria, as pessoas buscaram superar coletivamente as barreiras íntimas e satisfazer a obrigação social de ser corajoso”. E cita um personagem de Jünger, que, a três minutos de um ataque do qual faria parte, deu “um longo trago” de aguardente, “como se estivesse bebendo água”, e em pouco tempo passou a se sentir “fervendo numa fúria que me é agora profundamente inconcebível”, tomado de um “desejo incontrolável de matar”.

Quase nada disso aparece no trabalho de Ohler. As conclusões a que o autor induz com seu livro têm escassa conexão com qualquer contexto que vá além do que ele enxerga nos documentos – e aqui, evidentemente, não se trata de rejeitar liminarmente qualquer explicação heterodoxa para o comportamento dos nazistas, mas sim de questionar os reducionismos que fornecem respostas fáceis para questões complexas.

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O método de Ohler não é acidental. Sua intenção é fornecer uma história que alivie as consciências de seus compatriotas. Ohler não está sozinho nisso. Raros são os alemães que se dispõem a discutir o colapso moral na Alemanha, cujos cidadãos, com honrosas exceções, aceitaram um regime que desde sempre anunciou suas intenções genocidas. O historiador alemão Hans Mommsen, por exemplo, escreve no posfácio do livro de Ohler que aquele trabalho mostra “claramente como a nação ordenada precisava de droga”, razão pela qual “a motivação idealista propagada pelos nacional-socialistas é fortemente relativizada”. 

É preciso salientar que Mommsen, que serviu como uma espécie de orientador para Ohler, é um dos expoentes da corrente “funcionalista” da historiografia alemã do nazismo, que considera Hitler um ditador sem poder, pois o que imperava era a caótica burocracia nazista. Nesse sentido, um Hitler entregue ao vício das drogas é a imagem perfeita de um dirigente fraco.

Embora seja bem escrito, com senso de humor e com um bom apanhado do uso de drogas naquele período, High Hitler vai além do que as fontes permitem. “Viaja”, para usar um termo comum no mundo das drogas. Mas seu maior dano colateral não é esse, e sim o fato de que ele retira dos alemães em geral, e do regime nazista em particular, a responsabilidade por seus atos.

Os nazistas, e os alemães que entusiasticamente os apoiaram, não precisavam de nenhum entorpecente. Como diz Elias, a própria guerra é uma poderosa droga.

Capa do livro 'High Hitler', de Norman Ohler Foto:

High Hitler Autor: Norman OhlerTradução: Silvia BittencourtEditora: Crítica 160 páginas R$ 56,90

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