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Livro 'Maria Altamira' é uma verdadeira odisseia latino-americana

Romance de Maria José Silveira questiona o ideal do progresso

Por Dirce Waltrick do Amarante
Atualização:

Em Maria Altamira, a romancista Maria José Silveira não escreve nada que não seja necessário. Sua linguagem é direta e sem subterfúgios, e por não ser sentenciosa, permite que o leitor tire suas próprias conclusões. Alelí, umas das protagonistas do livro, é uma peruana de dezesseis anos que, depois de perder toda a família, incluindo uma filha de três anos, num terremoto na pequena cidade de Yungay (um fato verídico, como muitos outros que compõem o romance), passa a andar a esmo pela América do Sul até se fixar no Pará. No seu percurso, “Alelí descia onde descia. Comia o que lhe davam. Dormia onde dormia, mal saindo das rodoviárias ou das paradas, suas roupas cada vez mais sujas e gastas. Olhos sempre no chão como se não soubesse mais erguê-los”. 

A cidade peruana de Yungai, arrasada por um terremmoto e ponto de partida do romance 'Maria Altamira', de Maria JoséSilveira Foto: Emily Bloor

Ela só não é uma personagem completamente “vazia e muda”, porque, mesmo depois do trauma, seus ouvidos permanecem vivos e é através da música que expressa seus sentimentos. Alelí é, sem dúvida, uma das personagens inesquecíveis da nossa literatura, como Sinhá Vitória, de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, ou Ana Terra, do livro homônimo de Érico Veríssimo. A sua odisseia latino-americana começa nos anos 1970. A protagonista percorre a Bolívia, com suas “cidadezinhas todas semelhantes, cópias uma das outras”, com casas pobres e outras menos pobres, parecidas com as de sua terra natal. Porém, nesse país, ao contrário do seu, havia cartazes que diziam, por exemplo, “Campesinos! El patron ya no comerá de tu pobreza”. No Peru, o que ela via, pelo menos na parede da venda de seu pai, era a foto do presidente Juan Velasco Alvarado, um “milico”, que colocava culpa da pobreza dos peruanos nos “gringos”.A heroína atravessa o Chile entre caminhões que levam sacos de lona com os “mortos de Pinochet”. Chega à Argentina, e mais uma vez se depara com mortos da ditadura, encontrados em valas comuns, “torturados, esquartejados, queimados”, ou desaparecidos, uma centena deles. Alelí, de fato, percorre “cidades feias, empilhando seus dramas terríveis, suas pulsões de ódio”.  No Paraguai a paisagem política e social é a mesma. Quando chega ao Brasil, segue passando “por cidades fantasmas, adivinhando medo e miséria na cabeça baixa dos camponeses. E outra vez tropas. Mais de dez mil militares atrás de um punhado de guerrilheiros que muita gente nunca nem tinha visto. Muita rapaziada morta pelos matos”. A descrição desses países da América do Sul é fruto de intenso trabalho de pesquisa, como a escritora destaca nos agradecimentos finais de seu livro. No Brasil, esse panorama histórico se estende dos anos 1970 até praticamente os dias atuais. Silveira faz denúncias terríveis, que trazem à tona um país apegado a relações autoritárias, nas quais o poder e o dinheiro se impõem a qualquer outra causa ou desejo.  Na região do Xingu, onde transcorre a maior parte da trama, Silveira destaca o impacto negativo da construção da usina de Belo Monte, que, em nome do “progresso”, colocou em risco a vida dos povos originários, destruindo seu rio, suas águas e com elas os peixes e outros seres vivos. Convém lembrar, com Ailton Krenak, que nas narrativas indígenas “tem gente que era peixe, tem gente que era árvore antes de se imaginar humano”. E essas narrativas vem à tona também no romance.  Em Altamira (Pará), nasce Maria Altamira, filha de Alelí e Manuel, um indígena da etnia Juruna, que luta pela preservação da floresta e a sobrevivência de seu povo, mas é assassinado antes do nascimento da filha. Maria Altamira passa então a protagonizar uma das histórias paralelas do livro. Mãe e filha vivem, porém, vidas separadas: Alelí, fugindo de si mesma e da sina trágica que acredita carregar, e Maria, tentando entender suas origens e vingar a morte do pai. Em busca de oportunidade de estudo, a moça parte para São Paulo, e lá encontra mais pobreza. Convive com pessoas que, como diz Bruno Latour, “se tornaram especialistas na tarefa de sobreviver à conquista, à exterminação, ao roubo de seu solo”.  A escritora fala em seu romance também das mudanças climáticas e destaca, assim como Bruno Latour, que, hoje, são desterrados não só os atingidos por guerra, mas também aqueles atingidos pelas mudanças climáticas, que transformam seu solo em região inabitável. Maria Altamira parece dialogar, a meu ver, com pelo menos dois livros fundamentais para pensarmos o que chamamos de “progresso”, do qual advêm, ao que tudo indica, mais problemas do que soluções: A Vida Não é Útil, de Ailton Krenak, e Onde Aterrar?, de Bruno Latour.  O leitor desse grande romance deve, como Alelí, manter o ouvido atento, para escutar os diferentes falares que tecem a narrativa. É AUTORA DE ‘CEM ENCONTROS ILUSTRADOS’ (ILUMINURAS)

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