Livro narra a rivalidade científica em torno da edição genética

Biógrafo de Steve Jobs e Leonardo da Vinci volta seu olhar para o Crispr em novo livro

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Por Sam Kean
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Por alguma razão, a ciência da genética parece gerar muitas rivalidades. James Watson e Francis Crick vs. Rosalind Franklin nos anos 1950. Craig Venter e Celera vs. Francis Collins e o Projeto Genoma Humano na década de 1990. Hoje em dia, é Jennifer Doudna e Feng Zhang que estão numa batalha potencialmente multibilionária pela tecnologia de edição de DNA chamada CRISPR.

O filme 'Gattaca' discutia as consequências éticas da edição genética Foto: Sony/Columbia Pictures

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As duas primeiras rivalidades geraram relatos clássicos que tomaram livros inteiros – o polêmico The Double Helix: A Personal Account of the Discovery of the Structure of DNA (A Dupla Hélice: Um Relato Pessoal da Descoberta da Estrutura do DNA), de Watson, e o excêntrico The Genome War: How Craig Venter Tried to Capture the Code of Life and Save the World (A Guerra do Genoma: Como Craig Venter Tentou Capturar o Código da Vida e Salvar o Mundo), do escritor científico James Shreeve. Agora, quanto à CRISPR, o biógrafo Walter Isaacson está trazendo uma nova abordagem com seu arrebatador, The Code Breaker: Jennifer Doudna, Gene Editing and the Future of the Human Race (O Quebrador de Códigos: Jennifer Doudna, Edição Genética e o Futuro da Raça Humana).

A motivação de Isaacson para escrever o livro era simples. “Surge uma alegria quando você entende como alguma coisa funciona”, diz ele. Além disso, a CRISPR é a ferramenta de edição de DNA mais poderosa que a humanidade já possuiu, e “descobrir se e quando será possível editar nossos genes”, observa ele, “será uma das questões mais importantes do século 21”.

A história da descoberta da CRISPR é complicada, vai e volta entre laboratórios no Japão a tanques salgados na Espanha e uma fábrica de iogurte em Wisconsin. Resumindo, a CRISPR é um antigo sistema de defesa que as bactérias usam para matar os vírus por meio da fragmentação do material genético. Os cientistas que a descobriram e descreveram foram movidos por pura curiosidade. Mas, pouco tempo depois, eles perceberam que a capacidade da CRISPR de cortar DNA também fornecia um meio de editar o DNA.

Uma equipe conjunta liderada por Emmanuelle Charpentier na Europa e Jennifer Doudna na Universidade da Califórnia, em Berkeley, finalmente conseguiu editar o DNA bacteriano com CRISPR e ganhou patentes por este trabalho. No entanto, uma equipe liderada por Feng Zhang no Broad Institute, uma parceria privada Harvard-MIT, foi a primeira a editar células humanas, que são mais complicadas, mais importantes do ponto de vista médico e muito mais lucrativas. No fim das contas, Zhang ganhou a patente para células humanas. Furiosa, Doudna contestou no tribunal, argumentando que Zhang não havia feito nada, exceto dar o “próximo passo fácil e óbvio” numa tecnologia de que ela era pioneira.

Narrativamente, os dois adversários formam um contraste perfeito: a americana Doudna numa escola pública da Costa Oeste contra o imigrante Zhang num laboratório de elite da Costa Leste. Ainda assim, embora seduzido pelo drama, Isaacson lastima a batalha das patentes por ser uma perda de tempo e dinheiro. Como contraponto, ele destaca o início da indústria de microchip, em que possíveis rivais licenciavam suas patentes de maneira cruzada e então começavam a trabalhar de fato fazendo as coisas, para o benefício de todos. Tem uma lição aqui, ele observa sarcasticamente: “Não brigue para dividir o lucro antes de terminar de roubar a diligência”.

Seja nos meandros da bioquímica ou nos detalhes das patentes, Isaacson expõe tudo com sua prosa sempre lúcida; é rápido, cativante e até engraçado do começo ao fim. Você sairá com uma compreensão mais profunda da ciência em si e de como ela é feita – incluindo suas muitas trapaças.

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A única falha do livro talvez esteja no título: The Code Breaker, no singular. Como biógrafo – ele escreveu sobre Steve Jobs e Leonardo da Vinci, entre outros – Isaacson focou em uma personagem principal: Doudna. É uma escolha compreensível. Os leitores precisam de um rosto humano para se vincular à ciência, e Doudna, que, junto com Charpentier, ganhou recentemente o Prêmio Nobel pela CRISPR, é a personagem mais glamorosa da área. Isaacson também não tem medo de mostrar suas arestas: ela é profundamente competitiva e muito ciosa dos créditos por seu trabalho, tanto que seu relacionamento com Charpentier esfriou significativamente.

Ainda assim, a exemplo do que aconteceu com o Prêmio Nobel, o holofote com foco em Doudna distorce nossas percepções. A ciência hoje em dia é altamente colaborativa e dezenas e dezenas de cientistas contribuíram para o aperfeiçoamento da CRISPR. Infelizmente, o Comitê do Nobel limita arbitrariamente o prêmio a três pessoas. É ridiculamente restritivo.

Apesar de todo o trabalho seminal que Doudna fez, a CRISPR não é uma descoberta “dela”. E por mais que Isaacson fale das outras pessoas envolvidas, ela ainda é sua única decifradora de códigos – e é seu rosto que ocupa a capa do livro. Os ricos sempre ficam mais ricos. No mínimo, ele poderia ter feito o que o Comitê do Nobel fez, exaltando Doudna e Charpentier: seu prêmio marcou a primeira vez em que duas mulheres dividiram um Nobel científico – um grande marco, dado como as mulheres geralmente lutam para ganhar reconhecimento na ciência. Em vez disso, todas as histórias aqui são filtradas por Doudna. De modo geral, seria melhor se Isaacson tivesse adotado uma abordagem mais coletiva, semelhante à sua história dos primórdios da indústria de computadores – “Os inovadores”, no plural.

Perto do final, o livro passa a falar dos dilemas éticos que a CRISPR poderia desencadear se os humanos começassem a editar nosso DNA. Em vez de lançar os clichês de sempre sobre “brincar de Deus” com “bebês projetados”, Isaacson recusa os medos mais alarmistas. “Será que não estamos ficando um pouco dramáticos demais com toda essa ansiedade?”, pergunta. Ele até menciona o argumento, sem endossá-lo por inteiro, de que talvez tenhamos o dever de editar as crianças, em vez de condená-las à miséria da doença e aos caprichos da “roleta sexual”.

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Ele faz uma discussão especialmente cuidadosa sobre a tensão entre os indivíduos e a sociedade. Acreditamos que a sociedade em geral se beneficia quando contém “pessoas que são baixas e altas, gays e heterossexuais, plácidas e atormentadas, cegas e não cegas”. Mas se a CRISPR der aos pais a possibilidade de eliminar uma opção em cada caso, não é difícil imaginar o que vai acontecer.

A maioria dos geneticistas provavelmente esperava empurrar essas questões éticas para o futuro. Infelizmente, um geneticista na China se desgarrou em 2018 e implantou embriões editados por CRISPR dentro de duas mulheres, numa tentativa (provavelmente fracassada) de tornar os bebês imunes ao HIV. Ele foi denunciado e atualmente está na prisão.

Isaacson, no entanto, argumenta que a pandemia de coronavírus acelerará a aceitação e a aplicação da CRISPR. Afinal, a CRISPR começou muito tempo atrás como ferramenta de combate a vírus em bactérias e, depois de mais de 118 milhões de casos de coronavírus em todo o mundo, projetar nossos corpos para resistir a doenças parece muito menos radical. A CRISPR poderia, no mínimo, ter fornecido o teste rápido e barato de que precisávamos na primavera passada para cortar a pandemia pela raiz.

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Isaacson também argumenta que a pandemia irá refazer permanentemente a própria ciência, “lembrando aos cientistas a nobreza de sua missão” e revertendo tendências de longa data em direção à pesquisa comercializada. Mas você pode me chamar de cético: suspeito que essas tendências, mesmo que estejam em suspenso, vão continuar no Depois. (Lembra quando o 11 de Setembro estava inaugurando uma era de bipartidarismo e unidade?) Ainda assim, a pandemia esfriou a batalha pelo crédito da CRISPR, à medida que laboratórios como o de Doudna e o de Zhang se voltaram para a pesquisa do coronavírus. Por agora, pelo menos, eles trouxeram os holofotes de volta para os pacientes, não para as patentes. / Tradução de Renato Prelorentzou

*Sam Kean é autor de cinco livros, entre eles The Disappearing Spoon: And Other True Tales of Madness, Love, and the History of the World From the Periodic Table of the Elements. Seu novo livro, The Icepick Surgeon: Murder, Fraud, Sabotage, Piracy, and Other Dastardly Deeds Perpetrated in the Name of Science, sai em julho.

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