Ele não foi um filósofo como Agostinho, Aquino ou Ockham. Tampouco foi um fundador de ordens religiosas, como Domingos, Francisco ou Loyola. Mas, no imaginário popular, nenhum deles é tão amado quanto Fernando, que entrou para a história como Santo Antônio. Nascido fidalgo em Lisboa com o sobrenome de Martins de Bulhões e Taveira de Azevedo, e morto em 1231, aos cerca de 40 anos, em Pádua, na Itália, como frei Antônio, o santo tem agora sua vida narrada, em livro de Edison Veiga.
O autor é jornalista experiente, com passagens por alguns dos mais importantes veículos de imprensa do Brasil. E escreveu um livro num estilo fluído, mais próximo dos textos jornalísticos do que dos produzidos por historiadores. Os primeiros oito capítulos contam, em ordem cronológica, a vida de Antônio. Ficamos sabendo sobre as privilegiadas condições dentro das quais veio ao mundo, da precocidade nos estudos, da manifestação da vocação religiosa (contra a vontade paterna, que vislumbrava um futuro de cavaleiro para seu primogênito), da adesão, primeiro aos agostinianos e, depois, aos franciscanos (quando mudou o nome para Antônio). Em seguida, descobrimos que o futuro santo tentou pregar no norte da África, onde quase morreu por duas vezes: a primeira, de doença, no Marrocos; e a segunda, quando, ainda enfermo, tentava voltar a Portugal, e o barco em que viajava enfrentou uma tempestade tão terrível que por muito pouco escapou de naufragar, finalmente aportando na Sicília, bem longe do destino original. O livro prossegue, mostrando a trajetória surpreendente do frade, que em poucos anos seria um dos religiosos mais amados e respeitados da Itália, inclusive pelo papa e pelo fundador da ordem à qual aderira, Francisco de Assis. É curioso descobrir que Antônio era absolutamente modesto e frugal, avesso a títulos e cargos, e que, quando se impunha, fazia-o como quem não quer nada, sem erguer a voz, ajudado por dois traços que o deixaram famoso em toda a Europa: a erudição e a retórica, tidas como inigualáveis em seu tempo. Além disso, inúmeros relatos de milagres começaram a surgir quando Antônio ainda vivia, com crescimento exponencial nos meses seguintes após sua morte. Isso seria decisivo para que o processo de canonização pudesse ocorrer em tempo recorde: menos de um ano após morrer, o irmão Antônio de Pádua já era, oficialmente, Santo Antônio. Os quatro capítulos finais tratam da “vida após a morte” de Santo Antônio: de como sua fama de milagreiro se espalhou, de como se tornou o santo mais popular em muitos países (pesquisas recentes apontam que, entre os católicos brasileiros, apenas Nossa Senhora tem mais adeptos) e de como, curiosamente, entrou para o exército, primeiro em Portugal e depois em nosso país: após uma batalha, quando o uso da imagem do santo sob fogo inimigo teria supostamente alterado favoravelmente o desfecho, diversas unidades militares passaram a “alistá-lo”. Em alguns casos Antônio recebeu a patente de soldado, mas na maior parte dos batalhões em que serviu teve a patente de oficial, sendo, por vezes, até mesmo promovido. O soldo era pago a alguma instituição franciscana próxima do quartel em que ele “servia.” No Brasil, o costume, inaugurado na colônia, atravessaria o império e chegaria aos primeiros anos da República, até que, em 1924, sob a presidência de Arthur Bernardes, o santo pôde, finalmente, gozar de merecida aposentadoria. O despacho do ministro da Guerra, marechal Setembrino de Carvalho é uma pérola de ironia: “O coronel Antônio de Pádua vai quase em três séculos de serviço. Nomeie-o general e ponha-o na reserva.” Como ocorre a respeito da carreira militar póstuma de Antônio, há inúmeros relatos saborosos ao longo do livro, referentes tanto a passagens da vida quanto aos decantados milagres operados pelo santo. Por exemplo, sobre a hipótese de como teria surgido a fama de casamenteiro. Uma moça, já passando da idade adequada e desesperada para conseguir um noivo, fez uma novena para Santo Antônio, mas ameaçou-o: se, após os nove dias, não aparecesse um bom pretendente, ela jogaria a imagem do santo pela janela. Os nove dias se passaram, ninguém apareceu e ela, enfurecida, fez o prometido. A imagem, porém, ao voar para a rua, acabou se chocando contra a cabeça de um rapaz que passava, ferindo-o. Ele bateu à porta da casa para reclamar, a moça atendeu, e foi paixão à primeira vista. Mas talvez o milagre mais impressionante tenha sido o da bilocação: enquanto rezava uma missa em Montpellier, na França, Antônio “soube” que, naquele exato instante, seu pai estava sendo julgado, em Lisboa, acusado injustamente de ter desviado itens do tesouro real que estavam sob sua guarda. Sem conseguir se explicar, o pai de Antônio estava sendo condenado à morte. Então Antônio apareceu na sala de julgamento, alegou ao rei que o pai era inocente e explicou nas casas de quais funcionários ele deveria mandar procurar seus tesouros, beijou o pai e se foi. Enquanto isso, na missa, em Montpellier, as pessoas só perceberam que Antônio interrompeu subitamente o sermão e ficou em silêncio, por alguns minutos, como se estivesse cochilando, para em seguida despertar e continuar de onde havia parado. Viria deste episódio a expressão “tirar o pai da forca.”Santo Antônio é livro que se lê com prazer e onde se aprende não pouca coisa sobre “o santo mais querido do Brasil.” Fico pensando que o livro poderia, talvez, ser mais extenso, pois termina-se a leitura com vontade de saber mais. E, no último capítulo, quando se conta a respeito da recente reconstituição facial de Santo Antônio, feita com a ajuda de computadores, as imagens poderiam, mas não aparecem no livro (obrigando o leitor a ir ao Google, onde descobre um rosto bonachão e rechonchudo que nada tem a ver coma as imagens do Santo Antônio esbelto que vemos reproduzidas por aí). A intenção do autor claramente não era a de produzir uma biografia maçuda como a dos historiadores Peter Brown sobre Santo Agostinho ou Jacques Le Goff sobre São Luís. Santo Antônio nos entrega aquilo a que se propõe, e o faz com méritos.*André Caramuru Aubert é historiador e escritor