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Livro reflete sobre a influência do século 20 sobre a alma alemã

Autor de 'Os Alemães' se furta a estereótipos para tentar compreender um povo

Por Diogo Schelp
Atualização:

“Was ist Deutsch?” (“O que é alemão?”) perguntava, em letras garrafais, o cartaz de uma campanha do parlamento de Berlim para promover a integração de estrangeiros na cidade, em 2003. Acompanhava a pergunta, em letras miúdas, como possíveis respostas, uma longa lista de palavras-chave e expressões carregadas de estereótipos. “Árvores de Natal? Perfeccionismo? A Alemanha para os alemães? Democracia? 2.ª Guerra Mundial? Se esforçar? Ser crítico? Ser autocrítico? Chucrute?” E assim por diante. Poucos povos gastaram, e gastam, tanta tinta e saliva para debater a própria identidade nacional quanto o alemão. Johann Wolfgang Goethe, indiscutivelmente o maior patrono da cultura germânica, já dizia – mais de meio século antes da unificação das dezenas de Estados que, tardiamente, daria origem à Alemanha – que, em comparação com os vizinhos, os alemães são “animais ruminantes”, pois preferem remoer o passado, enquanto “na França, o que passou, passou”.

A atrizMarlene Dietricht, um dos símbolos do ideal alemão Foto: Wikimedia Commons

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Seria simplista concluir que essa obsessão pelo “ser alemão” é a grande culpada pelo surgimento da ideologia racista do nazismo e suas consequências. Trata-se, antes, de uma de suas facetas – a mais terrível, sem dúvida. Como argumenta o cientista político americano Francis Fukuyama no livro Identity: The Demand for Dignity and the Politics of Resentment, lançado no mês passado nos Estados Unidos, a construção de uma identidade coletiva é algo saudável e desejável, desde que não seja excludente. Os alemães foram confrontados com a questão da identidade em diferentes momentos de sua história: no período do chamado classicismo de Weimar, no século 18, para se diferenciar dos numerosos povos europeus que os rodeavam; para encontrar os elementos que os aglutinassem na unificação, em 1871; no processo de imposição das políticas raciais e do extermínio judeu no período nazista; na posterior cristalização da culpa coletiva pelos horrores da 2. Guerra e na busca pelos elementos que ainda sobravam da essência alemã após a revelação do Holocausto; no surgimento de uma dupla narrativa nacional, dessa vez pautada pelo antagonismo entre capitalismo e comunismo, durante a divisão entre Alemanha Oriental e Ocidental no período da Guerra Fria; para redescobrir o denominador comum do que é ser alemão depois da queda do Muro de Berlim, em 1989, e da reunificação das duas Alemanhas, cujas populações viveram apartadas durante mais 40 anos; e, por fim, nos últimos anos, diante da mudança da paisagem social e da percepção de diluição cultural com a chegada em massa de refugiados econômicos e de guerra.

A desafiadora tarefa de debater a identidade alemã coube, em seus respectivos momentos históricos, a escritores, políticos, cientistas e pensadores da estirpe de Friedrich Schiller e também de Otto von Bismarck, Max Weber, Marx, Einstein, Thomas Mann, Hannah Arendt, Adorno e Habermas, entre muitos outros. Não é de se estranhar que os alemães considerem uma grande ousadia que um estrangeiro aventure-se a dizer o que os define. Em seu livro Über die Deutschen (“Sobre os Alemães”), publicado em 2007, o historiador Alexander Demandt argumenta que as visões externas sobre os alemães dizem mais sobre a nacionalidade de quem as expressa do que sobre o povo alemão. “Por isso o mais produtivo é o autorretrato étnico. Ele caracteriza os alemães como eles próprios se caracterizam como alemães, o que eles encontram para elogiar, para repreender, para observar em si mesmos”, escreve Demandt. 

Quanta audácia, portanto, demonstra o historiador brasileiro Vinícius Liebel ao encarar o desafio de captar a alma desse povo em Os Alemães. Liebel é especialista em Europa contemporânea e doutorou-se em Ciência Política pela Universidade Livre de Berlim, onde Demandt leciona. Seguindo a proposta da Coleção Povos & Civilizações, da Editora Contexto, o autor, descendente de austríacos, põe-se a explicar o que são e como são os alemães com ênfase nos traços típicos que parecem peculiares ao olhar brasileiro. Não escapa, portanto, de ter de discorrer sobre a validade ou não de estereótipos germânicos, como a excessiva organização e o gosto por cerveja, por salsichas, por pães e por trilhas na floresta. Mas é na síntese da influência dos acontecimentos do século 20 sobre a identidade alemã que sua obra se destaca. 

Ao lado da língua-mãe e do orgulho por seu incomparável passado cultural (na literatura, na música clássica, na filosofia, no cinema), o principal traço identitário que emerge do livro é a dualidade entre reflexão e violência. Os motivos para admirar os alemães estão invariavelmente conectados à sua capacidade de autorreflexão. Para Liebel, dessa característica brotaram as principais obras artísticas e filosóficas produzidas em alemão ou por alemães – de Wagner a Freud. “O subjetivismo, a introspecção e a reflexão sobre as virtudes do indivíduo são elementos constantemente tratados e retomados pelos autores de língua alemã”, escreve Liebel, completando que essas características se materializam em uma “busca pelo desenvolvimento ou pela compreensão do ‘eu’, compondo um passeio pelas virtudes e vícios da humanidade”. Em momentos cruciais da história alemã, porém, a capacidade de reflexão foi sobrepujada pela violência. A primeira era fruto da valorização da cultura e da língua como elementos essenciais do “ser alemão”. A segunda, do foco nas noções de raça e etnicidade. 

Essa dualidade foi mais marcante no período entreguerras, quando a celebração da liberdade artística e de pensamento da República de Weimar foi sendo paulatinamente esmagada pelo autoritarismo dos nazistas. A instauração do Terceiro Reich representou a morte da reflexão entre os alemães, sendo substituída pela paranoia coletiva, pela obediência burocrática e pelo irracionalismo. Nesse contexto, observa Liebel, “algumas frases que se mostram falsas ou mesmo absurdas quando analisadas de forma mais detida, de repente se tornaram verdades absolutas, irrefutáveis para muitos alemães mesmo com dados e com as provas mais evidentes em contrário”. Deu no que deu. Agora troque “alemães” por “brasileiros” ou qualquer outra nacionalidade. Alguma semelhança com as tendências autoritárias e populistas que avançam hoje em diversos países, inclusive no nosso? Os tempos atuais pedem uma reflexão sobre a história da Alemanha e a incessante busca de seu povo por uma identidade. “Was ist Deutsch?” *Diogo Schelp é jornalista

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