Livro reúne memórias do editor de Kafka, Pasternak, Calvino e outros

Kurt Wolff foi um dos grandes agitadores culturais do século 20

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Por Paulo Nogueira
Atualização:

Durante séculos uma cruzada árdua, ver a respectiva obra editada – o sonho proverbial do escritor – é hoje muito mais simples, com as autopublicações digitais e a proliferação de empresas que lançam edições de autor mais ou menos disfarçadas. Atualmente, desde que se tenha grana, qualquer Zé-Mané pode pavonear o seu livrinho. 

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Kurt Wolff foi editor de Franz Kafka, ilustrado por Cido Gonçalves Foto: Cido Gonçalves

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Nada contra, aliás. Mas editores de verdade são outros quinhentos. Pois uma editora literária, embora uma firma comercial, não se reduz a uma fábrica de salsichas, com uma produção mecanizada e serial. Um editor pode ser um garimpeiro cultural, correndo riscos financeiros e pessoais para desenterrar, se não uma jazida, ao menos uma pepita de ouro. 

Max Perkins, diretor da americana Scribner, foi uma dessas criaturas tutelares, viabilizando e apascentando os romances e os egos de Hemingway, Fitzgerald e Thomas Wolfe. Recentemente, rolou até um filme meia-boca sobre Perkins (com Colin Firth no papel dele), que virou ombro amigo e cartão de crédito daquela tempestuosa troika. 

Seres mercuriais, por vezes os escritores tentaram assumir o timão. Em 1924, amargurados com o “filistinismo” editorial britânico, Virginia e Leonard Woolf fundaram a Hogarth Press. O primeiro título editado foi prata da casa: O Quarto de Jacob, da dona. Por causa dos perrengues nas edições do segundo (Prelúdio, de Katherine Mansfield) e do terceiro (The Dark Island, de Vita Sackville-West), Virginia Woolf perderia respectivamente sua melhor amiga e sua amante. Como desgraça pouco é bobagem, a Hogarth Press rejeitou o manuscrito de Ulysses, de James Joyce, considerando-o “as efusões de um adolescente cheio de espinhas”. Alguns anos depois, Virginia encheu os bolsos de pedras mais ou menos do tamanho das de Stonehenge e se jogou num rio. Entre a atividade editorial e o suicídio dela não há necessariamente uma relação de causa e efeito. 

Outra rejeição escandalosa aconteceu em 1912, quando Marcel Proust submeteu O Caminho de Swann (primeiro volume do monumental Em Busca do Tempo Perdido) à recém-criada Gallimard. Naquela época, a reputação de Proust era a de um dândi colunável. Gaston Gallimard pediu uma avaliação a André Gide, que abriu desdenhosamente (tipo “unidunitê”) o manuscrito na página 62, colidindo com uma descrição quilométrica e excruciante de uma xícara de chá. O livro levou um passa-fora, e saiu pela rival Grasset, embolsando o prêmio Goncourt com um pé nas costas. Gide escreveu ao autor: “Declinar sua obra será para sempre um dos maiores vexames da minha vida.”

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Às vezes a coisa corre melhor quando um escritor atua como editor informal do outro. O manuscrito do poema The Waste Land, de T. S. Eliot, publicado em 1971 e hoje disponível num esplêndido aplicativo para tablets, mostra as inúmeras e truculentas canetadas de Ezra Pound. Eliot reescreveu tintim por tintim, até obter um “OK” na margem. E acabou dedicando a obra-prima a Pound, chamando-o de “il miglor fabbro” (o melhor artífice). Claro que nem sempre é prudente confiar num colega – como grunhiu o romancista americano Gore Vidal: “Cada vez que um amigo meu faz sucesso, eu morro um pouco.” 

Um dos maiores editores em língua alemã foi Kurt Wolff, cujas memórias a Âyiné (sempre com aquelas capas lindonas) acaba de lançar. Fundou a Kurt Wolff Verlag em Leipzig, em 1908, quando quase ainda nem lhe tinha nascido o dente do siso. Mais de meio século depois, pôs os pingos nos is: “Há 55 anos me perguntam: ‘Onde aprendeu a ser editor?’ E a minha resposta é sempre a mesma: em lugar nenhum.” Mas bom senso nunca lhe faltou: “Ter sorte é imprescindível – a esterilidade de uma época é pura fatalidade e, em um período pouco criativo, o editor está condenado à impotência.”

Wolff foi muitas vezes vinculado ao Expressionismo, mas ele tira o corpo fora: “Acabei ficando com a odiosa pecha de editor dessa escola. Querem atrelar ao conceito de expressionismo uma comunhão no grupo de autores publicados por mim, entre 1910 e 1925, que não existe.” Acontece que Wolff se recusa a chamar de expressionistas certos escritores conotados com essa estirpe. Um deles é o poeta Georg Trackl, cujo gênio Wolff foi o primeiro a peneirar e a publicar. Pena que Trackl não chegou a receber o volume: dilacerado pela paixão incestuosa pela irmã, se matou aos 27 anos. Mas, graças a Wolff, está engastado no cânone da lírica alemã e universal, influenciando poetas como Paul Celan e Ingeborg Bachmann.

Outro pseudo-expressionista do catálogo de Wolff foi o titânico polemista vienense Karl Kraus, que durante 40 anos redigiu sozinho o jornal A Tocha, onde pisou nos calos de uma legião de centopeias. Hoje Kraus ainda perdura pela atualidade de seus aforismos a laser, como: “O segredo do demagogo é se fazer passar por tão imbecil quanto sua plateia, para que esta se imagine tão esperta quanto ele.”

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Se errar é humano, Kurt Wolff também expia suas pisadas na bola. Não foi o caso de O Livro de San Michelle, do sueco Axel Munthe, um dos maiores best-sellers de todos os tempos. “Achei-o tão banal, fútil e patético, que não hesitei um minuto em rejeitá-lo.” Já quanto à recusa do manuscrito de O Declínio do Ocidente, de Oswald Spengler – ah, se arrependimento matasse...

Em 1940, Kurt e sua mulher Helen deram no pé da Alemanha nazista e se estabeleceram em Nova York, sem terem onde cair mortos. Num piscar de olhos, porém, fundaram uma editora, a Pantheon Books, que aos poucos alinhavou um feérico catálogo, injetando cosmopolitismo à cena cultural americana: Boris Pasternak, Gunter Grass, Italo Calvino, Umberto Eco, Amós Oz...

Mas a gema mais preciosa da mina de Kurt Wolff aflorara mesmo na Alemanha: a primeira edição de Franz Kafka. Uma anedota sobre um certo autor narcisista reza o seguinte: “Não há nada mais raro do que uma primeira edição dos meus livros!”, exclamou ele. “Tem sim”, discordou um interlocutor. “Uma segunda edição deles.” No caso de Kafka, Wolff lacrou: “Há exceções, mas uma obra com sucesso explosivo e imediato, na maioria das vezes, tem vida curta – já uma que tem êxito somente anos, ou décadas depois, normalmente tem vida longa. Kafka é hoje um clássico da literatura, mas morreu desconhecido.” Como Wolff ressalvou, há exceções. Durante uma viagem aos EUA, Charles Dickens telegrafou ao seu editor inglês para saber sobre as vendas de Oliver Twist. A pergunta e a resposta foram apenas estas, respectivamente: “?” e “!”.

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Segundo Wolff, Kafka era mesmo kafkiano: “Ah, como sofria. Calado, acanhado, tênue, vulnerável, intimidado como um colegial diante do examinador, convencido da impossibilidade de satisfazer as expectativas geradas pelos elogios de Max Brod. Na despedida, Kafka disse algo que jamais ouvi de algum autor, nem antes nem depois: “Agradeceria o senhor mais pelo retorno do manuscrito do que pela publicação.” Querem coisa mais kafkiana?

Como Kurt Wolff reconheceu inúmeras vezes, não é fácil separar o joio do trigo. Até porque, existe apenas uma regra para se escrever uma obra-prima imortal. Infelizmente, ninguém sabe qual é.  *Paulo Nogueira é autor de 'O Amor é um Lugar Comum' (Intermeios) 

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