Livro reúne os contos completos de Caio Fernando Abreu

Em entrevista ao 'Aliás', um dos autores do posfácio, Italo Moriconi, fala sobre a importância do autor e a ressonância de sua obra na atualidade

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Por Ubiratan Brasil
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Os tempos sombrios da ditadura militar inspiraram o estilo combativo e radical que Caio Fernando Abreu (1948-1996) imprimiu em sua escrita. Basta observar o portentoso volume Contos Completos, lançado esta semana pela Companhia das Letras que, além de reunir a produção antes publicada em seis volumes, traz ainda dez textos avulsos, dos quais três inéditos em livro, cobrindo o período entre 1970 e 1990. 

O escritor Caio Fernando Abreu: voz dos anos 1980 que ecoa em 2018 Foto: MARCOS MENDES/ESTADÃO

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“Caio criava movido por um sentido de urgência”, observa Alexandre Vidal Porto em um dos três posfácios do livro (os demais são de Heloisa Buarque de Holanda e Italo Moriconi). Na verdade, o escritor gaúcho conquistou a unanimidade de público e crítica, em 1982, com a coletânea Morangos Mofados, considerada a obra-síntese de uma geração que se despedia (nostálgica) da utopia hippie, mas ainda se via despreparada para a distopia yuppie, que viria a seguir. Sobre o assunto, Moriconi respondeu, por e-mail, as seguintes questões.

As questões existenciais levantadas em sua obra seriam uma forma de justificar o interesse atual de um grande público para Caio Fernando Abreu? Creio que as questões existenciais são interesse permanente de públicos leitores. É interessante assinalar, do ponto de vista crítico ou classificatório, que Caio se situa na vertente existencial da literatura brasileira, não na social e histórica. 

E o aspecto visceral de suas criações, construídas à base de uma generosa dose de exposição pessoal, numa arte de amadurecimento? A exposição pessoal é um fator que pode agregar “valor de leitura” à obra de Caio Fernando Abreu. Destaco as cartas dele que publiquei (atualmente em edição e-book na e-galaxia) e o importantíssimo livro de Marcelo Secron Bessa, Os Perigosos, que faz um panorama de toda a produção textual marcada, em certa época, pela epidemia da aids ainda sem controle, uma produção dentro da qual a obra de Caio é um marco. Sim, acredito que sua obra, à medida que se desenrola, vai acompanhando o processo de amadurecimento da pessoa Caio, com todos os seus dilemas. Essa é uma característica que faz de Caio um autor relevante na literatura para jovens e jovens adultos, embora não se possa restringir seu valor apenas a essa segmentação.

Ainda que ecos de sua obra permaneçam ressoando, há espaço na produção artística atual para o questionamento sobre como ele entrou para a posteridade?  Caio Fernando Abreu tem interesse por ser um autor que aborda os desconfortos de uma pessoa diante da vida. Em segundo lugar, o fato de que esse desconforto tem a ver com sua condição sexual e com a busca irrealizada e irrealizável de uma felicidade afetiva.

Hilda Hilst foi homenageada este ano na Flip. Ela e Caio mantiveram uma amizade literária e pessoal por vezes conturbada. Como avalia a forte influência de Hilda no trabalho de Caio? A influência da Hilda sobre o Caio me parece que vai além da simples literatura e tem a ver com o processo de amadurecimento pessoal do Caio. Os dois trocaram muitas figurinhas num momento em que ele começava e em que ela, na verdade, se aventurava num novo começo, na medida em que passava a escrever prosa também. Refiro-me ao período entre fins dos anos 1960 e início dos 70. Tanto Caio como Hilda buscavam uma literatura não realista, não sociológica, existencial na temática e experimental na linguagem. No entanto, minha hipótese é que os grandes mestres universais de leitura de um e de outro no aprendizado da prosa eram diferentes: Cortázar para Caio e Beckett para Hilda. 

Como se encaixa a obra do Caio na contracultura dos anos 1970/80?  Sobretudo pela temática. Caio é ‘o’ escritor da contracultura e também do clima de ‘o sonho acabou’ que se seguiu.

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Caio não gostava quando sua escrita era enquadrada na literatura gay. De que forma sua opção sexual foi determinante na produção de uma obra inspirada na condição humana, sem classificações?

Nenhum bom escritor gosta dos rótulos que lhe pespegam os críticos, porque são sempre, todos, limitadores do potencial total de qualquer obra de qualidade. Os rótulos críticos devem ser encarados como orientadores da discussão, e não como dogmas. Hoje, falar em literatura gay tem valor limitado, é algo mais relacionado com estudos universitários e com a emulação e criação de referenciais para a militância identitária. Nada contra, muito pelo contrário! Mas não se pode negar que a condição humana retratada por Caio seja a condição humana de um homossexual no Brasil de meados e fins do século 20. O elemento gay em Caio é tematizado sempre em contraste com a homofobia reinante – nesse sentido, Caio ainda fala muito de uma situação em que a homossexualidade é uma dificuldade, uma fonte de angústia ou ansiedade e de forte repúdio social. No entanto, a verdade é que a sexualidade, de modo geral, permanece uma fonte de angústia e ansiedade e é por aí que a literatura de Caio alcança o público mais amplo. Assinale-se, porém, que, nos anos 1990, na medida em que a obra de Caio começou a circular internacionalmente como “literatura gay”, ele mesmo foi revendo seus pontos de vista sobre a sexualidade, politizando-se, o que aumentou mais ainda quando ele se viu vítima da aids. Se o primeiro Caio se dirigia a toda a geração contracultural, no último Caio há a presença de um sentimento de comunidade, dado justamente pelo ataque da epidemia. A comunidade dos gays afetados ou afetáveis pela aids. No entanto, sua capacidade de se comunicar com o público em geral aumentou na mesma proporção, como nos provam as memoráveis crônicas publicadas no Estado.

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