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Livro revela a vida secreta de George Orwell, o jardineiro

Rebecca Solnit reavalia a obra de Orwell à luz de seus interesses hortícolas e pastorais

Por Amy Stewart
Atualização:

Na primavera de 1936, George Orwell plantou algumas rosas. Talvez não seja grande coisa, mas, em seu novo livro expansivo e instigante, Rebecca Solnit se vale do jardim de Orwell como uma forma de explorar a vida pessoal do autor, sua escrita e seu trabalho político. É uma abordagem que o próprio Orwell provavelmente teria aprovado. No início de Orwell’s Roses, Solnit cita seu ensaio “Por que escrevo”, de 1946: “Enquanto estiver vivo e bem, vou continuar a ter convicções firmes quanto ao estilo da prosa, a amar a superfície da terra, a ter prazer com objetos sólidos e restos de informações inúteis”.

O escritor inglês George Orwell em foto colorizada Foto: Orwell Prize

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Este poderia ser também o manifesto do livro de Solnit. Ela começa com uma visita ao chalé de Orwell, no vilarejo inglês de Wallington, onde ficou surpresa ao encontrar em plena floração as rosas que ele plantara quase oitenta anos antes. “De repente, eu estava na presença dele, de uma maneira que não esperava”, ela escreve. “As rosas reorganizaram minhas velhas suposições”.

Quando ela se propõe a reavaliar a obra de Orwell à luz de seus interesses hortícolas e pastorais, encontra um homem que se preocupa tanto com sua horta quanto com sua carreira de escritor. Em 1933, ele escreveu numa carta: “Tivemos baciadas de ervilhas, feijões ainda começando, batatas um tanto ruins, por causa da seca, imagino. Terminei meu romance, mas há chumaços que simplesmente odeio”.

Mas não se trata apenas de um retrato afetuoso do grande homem como um humilde jardineiro: para Orwell, rosas e revolução estão interligadas. Numa coluna de 1944 para a revista socialista Tribune, ele escreveu: “Na última vez que mencionei flores nesta coluna, uma senhora indignada escreveu dizendo que as flores são burguesas”. Mas, com a guerra cada vez mais perto do fim, ele seguiria argumentando que a política e o prazer podiam coexistir e que não era “politicamente repreensível (...) apontar que muitas vezes vale mais a pena viver por causa do canto de um melro, de um olmo amarelando em outubro, de algum outro fenômeno natural que não custa dinheiro e não tem o que os editores dos jornais de esquerda chamam de perspectiva de classe”.

Uma coleção de vinhetas de Orwell com temas de horticultura já seria bem divertida, mas isso aqui é Solnit na estrada, e com ela ao volante desviamos de Orwell para Stalin, que condenou o botânico Nikolai Vavilov a morrer num campo de prisioneiros por se recusar a aceitar a pseudociência que Stalin havia abraçado. Vemos Tina Modotti, que fotografava rosas e viveu entre revolucionários no México. Passamos um momento com Jamaica Kincaid, que escreve sobre botânica e o colonialismo britânico, e visitamos uma fazenda de rosas colombiana, onde as questões dos direitos dos trabalhadores e do capitalismo estão vivas nos dias de hoje. A cada parada, Solnit se volta para Orwell, cuja obra diz respeito a tudo isso. “É preciso escolher entre libertar a Índia e consumir um açúcar extra”, escreveu Orwell certa vez. “O que você prefere?”.

Já estava na metade do livro quando percebi o que Solnit tinha feito: ela escrevera uma biografia que era realmente agradável de ler. As biografias tendem a começar do início, por razões óbvias, mas isso obriga o pobre leitor a se arrastar por um ou dois capítulos sobre a vida dos pais e avós do biografado, seguidos por uma recitação de tudo o que se sabe sobre sua infância. Alguma babá mais severa? Um verão feliz à beira do lago? Uma tragédia envolvendo um irmão mais velho ou um primo querido? Sem dúvida vamos ficar sabendo, porque o trabalho do biógrafo é nos dizer essas coisas. Praticamente qualquer fato revelado deve ser escrito para o benefício dos futuros estudiosos, o que não facilita nossa vida.

Mas nas mãos de uma romancista ou ensaísta habilidosa como Solnit – cujos livros incluem Os homens explicam tudo para mim e A mãe de todas as perguntas – a biografia se torna algo totalmente diferente. Tudo começa no meio. Ela pula as partes chatas. Tem uma voz e um ponto de vista. Escreve um livro assumidamente incompleto e confia que os leitores vão procurar em outro lugar tudo o que gostariam de saber.

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Out of Sheer Rage, o livro de 2009 de Geoff Dyer sobre sua incapacidade de escrever um “estudo acadêmico e sóbrio” de D.H. Lawrence, foi o primeiro livro dessa espécie que li – e desde então estou em busca mais livros semelhantes. Peggy Guggenheim: The Shock of the Modern (2015), de Francine Prose, é outro exemplo fantástico. Nem Dyer nem Prose se importam com trivialidades biográficas mundanas. Ambos têm um foco estreito, são idiossincráticos e maravilhosamente digressivos. Agora, Orwell’s Roses toma seu lugar ao lado de outras grandes biografias não-biografias escritas por autores aclamados que sabem como contar uma boa história.

A prosa de Solnit é tão pessoal e específica que desde a primeira página fiquei me perguntando como seria se ela só sussurrasse tudo no meu ouvido. Felizmente, ela mesma narra a versão em áudio e a lê com um tom de voz íntimo que sugere que ela está lhe contando todos os seus segredos.

“Vagar por livros e arquivos pode ser muito parecido com vagar por paisagens”, ela escreve sobre sua pesquisa e se lembra do momento em que descobriu uma menção a mais um dos interesses obscuros de Orwell. “Era uma toca de coelho onde valia a pena entrar”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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