Livro satiriza relações sino-americanas exibindo um dalai-lama estereotipado e chineses que assistem ao Saturday Night 'Liver' Eles comem cachorrinhos, não?

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Por DO QUAL FOI CRÍTICA DE CINEMA e LITERATURA
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JANET MASLINOs romances satíricos de Christopher Buckley não costumam despertar a dissonância cognitiva. Mas há algo perturbador em seu mais recente livro, They Eat Puppies, Don't They? (algo como Eles comem cachorrinhos, não?). O livro tenta ser engraçado, mas seu tema é a China, que deve ser atualmente um dos lugares menos engraçados do mundo. Não se trata de obra de época, mas o texto é muito datado. Boa parte de seu charme emana de uma heroína que parece inspirada por Ann Coultier. E sua comicidade deriva das fantasias envolvendo o assassinato do dalai-lama e o destino do corpo dele.Desta vez, Buckley, conhecido como fonte confiável de um soberbo humor erudito, parece ter sido sequestrado por um gêmeo preguiçoso e esnobe. Parece impossível que o autor responsável pelo estilo suave de Obrigado por Fumar possa escrever diálogos como "Helen Keller era capaz de ligar aqueles pontos" ou "eles estão mais nervosos em relação à China do que um gato de rabo comprido num cômodo cheio de cadeiras de balanço".É verdade que o talento de Buckley para trabalhar com o léxico continua ali, especialmente em se tratando de versões latinas e elegantes para termos menos elegantes do inglês. Assim, talvez o problema esteja na decisão dele de retratar as relações sino-americanas como hostis e pouco firmes. Em They Eat Puppies, Don't They?, há personagens que maldizem a vitória americana na Guerra Fria, e eles não parecem estar brincando ao fazer tais comentários.O personagem principal do livro é Bird McIntyre, lobista da indústria da defesa que elabora romances aventurescos de virilidade extrema e qualidade péssima, com imaginação digna de um Walter Mitty (personagem literário fictício, tímido e fantasioso). Lobistas? Literatura ruim? O coração dispara ao pensar em perspectivas como essas oferecidas por Buckley, e também na sua confiável e antropológica compreensão dos maneirismos de Washington ("problema de percepção é a gíria de Washington para se referir à realidade"). O entusiasmo é beneficiado pelo fato de Bird trabalhar para uma empresa - chamada Groeping-Sprunt graças ao raro dom de Buckley para criar nomes ao mesmo tempo ridículos e verossímeis - que pode ampliar seus lucros ao incitar secretamente situações conflituosas."Não vemos a dispensa de um número tão grande de militares desde a Guerra Fria", escreve Buckley, acrescentando que as pensões pagas a almirantes e generais chegam à "soma de mais de 300 estrelas até o momento". Novas hostilidades internacionais poderiam servir como injeção de ânimo para o ramo dos mísseis, independentemente dos danos colaterais envolvidos, embora no livro ninguém diga que não sairíamos despenteados do conflito, como ocorre em Dr. Fantástico.Ainda assim, They Eat Puppies, Don't They? reconhece sua óbvia dívida com Dr. Fantástico. A trama associa Bird a Angel Templeton, uma das mais belicosas e exibidas políticas dos EUA, de pernas longas e flertes constantes, diretora de algo chamado Instituto para a Continuidade do Conflito.Angel se veste como uma dominadora sadomasoquista e escreve livros com títulos como Em Defesa da Guerra Preventiva: Tirando o 'Re' de Retaliação. Ela gosta de comprar brigas nos programas políticos de entrevistas e tem muitos inimigos, como as enlutadas mães de militares que jogam nela medalhas Corações Púrpuras conquistadas pelos filhos. "Quando sou obrigada a entrar no estúdio pela porta dos fundos sei que estou fazendo um bom trabalho", diz ela a caminho de um programa de TV.O livro anterior de Buckley é Losing Mom and Pup, um relato não ficcional de como ele conviveu com a morte dos pais, William F. Buckley e Patricia Taylor Buckley. Diante disso, é difícil saber o que pensar do fato de Angel Templeton soar estranhamente como o pai do autor, falando dos "calouros de olhar ingênuo nos confortáveis redutos da academia" e empregando palavras como "persiflage" (mofa, go0zação) em conversas casuais. Ainda mais estranho é o fato de o camarada presidente Fa Mengyao, presidente da República Popular da China e secretário-geral do Partido Comunista chinês, ter pesadelos nos quais enxerga o rosto do pai, já morto, num bolinho que o próprio Fa devora, para seu horror.O principal momento de humor do livro ocorre quando Bird e Angel extrapolam uma pequena notícia a respeito do dalai-lama, transformando-a em suspeitas americanas segundo as quais os chineses estariam tentando acabar com o homem que Bird descreve como "um bom velhinho de 75 anos, de óculos, sandálias e roupão vermelho, distribuidor de abraços e afeito a mandalas".Enquanto isso, os líderes chineses são tão antiquados que se veem livres dos escândalos de corrupção e dos dissidentes, que costumam aparecer nas manchetes. Eles se comportam como puros estereótipos totalitários, tramam contra o dalai-lama e cometem enganos cômicos a respeito da cultura americana. Acreditam que o programa humorístico de maior sucesso no país se chama Saturday Night Liver.Os aspectos chineses do livro são frustrantes. A inspiração satírica de Buckley para as relações sino-americanas suscitou grande expectativa, mas não cumpre o prometido. As piores partes são as que mostram Bird como o atormentado marido de uma ambiciosa amazona chamada Myndi, que quer que ele compre animais caros para que ela possa ser aceita na equipe americana de equitação. Poucas coisas poderiam ser mais cafonas do que Bird usar a Cavalgada das Valquírias como toque personalizado para a mulher no celular.They Eat Puppies, Don't They? é um título estranho. Pode remeter alguns leitores ao fato de que os chineses consomem carne de cachorro. Mas o livro, com Myndi e seu hobby, evoca também o filme A Noite dos Desesperados (They Shoot Horses, Don't They?), de 1969. Quando um dos cavalos de Bird McIntyre apresenta uma lesão no tendão, Bird se vê "fantasiando a respeito das fábricas de comida para cachorro e o excelente trabalho que elas fazem". / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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