Livro sobre personagens femininas busca ponto cego na jornada do herói de Joseph Campbell

Professora de Harvard Maria Tatar propõe a 'jornada da heroína', buscando referências da Ilíada à Netflix

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Por Gal Beckerman
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Em Hollywood, não faz muito tempo, como se fosse a dica de um informante, havia a ideia de que para obter sucesso como roteirista você precisaria de um conhecimento prático de O Herói de Mil Faces, de Joseph Campbell.

Nesse livro de 1949, Campbell expôs as ideias e símbolos que sustentam os mitos ao redor do mundo, incluindo a jornada do herói, o enredo básico que impulsiona as histórias de Jesus, Buda, Moisés e Odisseu. Nas mãos de George Lucas, que viu em Campbell um guia para criar um herói, Luke Skywalker foi adicionado a esse panteão.

Maria Tatar traz referências pop para sua análise da jornada da heroína Foto: Lucasfilm

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No entanto, quando se trata de mulheres, Campbell, que morreu em 1987, era um pouco mais limitado. Não havia aventuras, batalhas ou retornos triunfantes para elas. O lugar das mulheres nesses mitos fundadores, uma vez ele insistiu, ao escrever sobre as musas, era triplo: “um, dar a vida; dois, ser aquela que nos recebe na hora da morte; e três, inspirar nossa realização poética e espiritual”

As ideias de Campbell vêm ecoando na cultura há décadas - especialmente após uma série popular conduzida por Bill Moyers em 1988 - mas há muito tempo precisam de uma resposta feminista. Seria difícil imaginar uma pessoa mais adequada para isso que Maria Tatar, a professora de Harvard que é uma das mais importantes especialistas do mundo em folclore.

Seu novo livro, The Heroine With 1,001 Faces, lançado esse mês pela Liveright, é uma resposta a Campbell, embora ela seja cuidadosa para não descrevê-lo como um ataque. “Mesmo que meu título sugira que estou escrevendo uma contranarrativa ou talvez o atacando, penso nele como uma sequência,” disse Tatar em uma entrevista por vídeo de sua casa em Cambridge, Massachusetts.

Ela está mexendo com o que J.R.R. Tolkien uma vez chamou de “caldeirão da história” em busca de meninas e mulheres - algumas silenciadas e algumas esquecidas, algumas da Ilíada e algumas da Netflix - que vivem no ponto cego de Campbell. O leitor pula da batalha de Aracne com Atena para a fuga da esposa traiçoeira de Barba Azul para Pippi Longstocking e Nancy Drew e até para Carrie Bradshaw digitando em seu laptop.

Esse é um livro, Tatar disse, que ela esteve a vida toda escrevendo, mas o isolamento de um ano por causa da covid-19 foi o que lhe trouxe o foco para juntar tudo.

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“Foi uma aventura enorme para mim em um momento tão sombrio para todo mundo”, ela disse. “Também escrevi durante as longas noites de inverno no auge da pandemia. Isso me mantinha viva. É o que as histórias fazem, apesar de tudo”.

A primeira mulher em Harvard a ir de professora assistente para um cargo titular em 1978, Tatar, uma especialista em literatura alemã, caiu quase por acidente no estudo de livros infantis e contos de fadas. Como uma mãe da década de 1980 lendo essas histórias para seus próprios filhos e descobrindo sua estranheza e violência, ela teve a ideia de escrever sobre elas e eventualmente dar aulas sobre o tema. O primeiro curso que arriscou foi um sucesso, e ela fez uma nova especialização. Desde então, vem comentando muitos volumes de folclore, incluindo livros dos Irmãos Grimm e Hans Christian Andersen.

Quando o movimento #MeToo aconteceu, ela olhou para trás, para todas as histórias que vinha ensinando e viu, como não tinha visto antes, a necessidade de elevar as vozes das mulheres - encontrar as heroínas. “A parte do silenciamento era apenas a metade, porque as mulheres realmente encontraram formas de se expressar,” ela disse. “Você só precisa reconhecer os instrumentos que elas utilizavam.”

Seu colega de Harvard, Henry Louis Gates Jr., que trabalhou com ela no livro de 2017, The Annotated African American Folktales, elogiou Tatar por “completar Campbell na questão de gênero” da mesma forma que o crítico cultural Albert Murray começou a completar Campbell na questão racial (o livro de 1973 de Murray, The Hero and the Blues, foi parte desse esforço).

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“Ela não é uma especialista da demolição”, Gates disse sobre Tatar. “Nunca lhe ocorreria fazer uma revisão de Campbell de uma forma hostil. Para ela é uma elaboração. Mas essa elaboração é uma revisão enorme de nosso entendimento sobre a representação das mulheres na mitologia e na ficção de forma mais abrangente.”

Tatar começou estudando os mitos clássicos no centro da civilização ocidental. Paralisadasatrás da jornada do herói estavam mulheres sem muito arbítrio, como Penélope esperando por Odisseu. O que significaria ver essas histórias de suas perspectivas, da forma com a qual escritoras como Margaret Atwood em A Odisseia de Penélope estão agora fazendo? De repente, mulheres mortais “seduzidas” por deuses como Leda ou Europa, surgem como vítimas de violência sexual e não como mulheres que escolheram namoros com cisnes e touros.

Então Tatar partiu para narrativas folclóricas, tradições orais firmemente no domínio das mulheres, embora muitas vezes tenham sido registradas para a posteridade por homens. Essas narrativas, com suas lições sobre como passar por um lobo ameaçador ou a crueldade do destino, realmente traziam heroínas cheias de astúcia e raciocínio rápido. Embora nunca tenham recebido o status da mitologia grega, essas histórias continham lições dirigidas a mulheres e meninas sobre como viver.

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No final de sua busca, Tatar finalmente chegou à cultura moderna atual, mergulhando nela - em um momento ela começou a citar Britney Spears para mim - e começando a identificar as diferentes qualidades que formavam uma heroína. Ela não estava interessada em se comprometer com arquétipos concretos ou com determinado conjunto de etapas numeradas na jornada da heroína, como Campbell. Mas o estudo de personagens como Jo March, Miss Marple e até Lisbeth Salander fizeram com que chegasse a algumas características: curiosidade, empatia, desejo de justiça ou equidade.

Tatar percebeu que estava lutando com o que significa ser uma heroína desde que era uma garota do subúrbio de Chicago lendo quadrinhos da Mulher Maravilha. Ela tinha 5 anos quando sua família emigrou da Hungria para os Estados Unidos depois da Segunda Guerra Mundial, e ela se sentiu marcada como uma “pessoa deslocada”, relembrando seu pânico só de pensar que poderia ser deportada se não comunicasse uma mudança de endereço.

A biblioteca pública era seu refúgio, ela disse, “o único lugar em que você podia ficar sozinho e lidar com o desconforto de estar em um lugar onde a linguagem não vinha naturalmente e a cultura não era familiar”.

Uma lembrança de adolescência marcou Tatar. Ao fazer uma prova de admissão para a faculdade em uma sala com outros 100 alunos, ela teve uma hora para escrever sobre a questão, “O que é um herói?” Ela congelou. “Eu me lembro tão claramente daquele momento porque, sabe, eu conseguia citar os nomes de Aquiles, Hércules e Odisseu,” ela disse. “Mas não conseguia entender o que havia de tão heróico neles”.

Além do fato de serem “assassinos natos”, ela disse, e que estavam lutando pela imortalidade, ela não conseguiu pensar em nada para escrever além de dizer que eram corajosos. “Fiquei tão constrangida”, ela disse. “Era um clichê. Mas eu não conseguia imaginar o que havia de tão excepcional neles, que coisa positiva haviam feito”.

Assistir à Netflix durante toda a pandemia (embora se limitasse a uma hora por dia) também fez com que Tatar se perguntasse se o binarismo que estava desenvolvendo - uma heroína para corresponder ao herói - era necessário ou já seria algo ultrapassado em uma cultura mudando rapidamente - e felizmente, ela pensa - em direção ao esfumaçamento dessas distinções.

“Uma das coisas que as histórias nos contam é que tudo continua evoluindo e mudando,” ela disse. “Que a história morre se não é modificada; não será relevante, não será atraente se você não fizer algo novo com ela.” /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

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