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Livro usa linguagem de vestibular para abordar opressão

'Múltipla Escolha', do chileno Alejandro Zambra, toma como base a vivência pessoal do escritor

Por Wilson Alves-Bezerra
Atualização:
Série 'Mais ou Menos Frutas', de Mira Schendel, refere-se ao esquemático Foto: Mira Schendel/MAM

Múltipla Escolha é o título brasileiro do livro Facsímil, do chileno Alejandro Zambra. Fac-símile remete ao modo como eram chamadas as cópias do exame nacional chileno de ingresso à universidade; fac-símile é a expressão latina que significa “fazer do mesmo modo”. É da ideia de padronização, própria dos regimes militares, que parte o livro. A tradução brasileira, como a norte-americana, opta pela aparente escolha presente nos testes vestibulares. Como se verá no livro, o título brasileiro funciona desde que lido em chave irônica pois, ao fim e ao cabo, é a própria noção de escolha que é problematizada.

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O livro se estrutura na impessoalidade dos discursos das provas de vestibular. Trata-se, propriamente, de um caderno de questões, com 90 perguntas de “múltipla escolha”, organizadas em cinco partes. O leitor é colocado na posição de quem resolverá o teste. O narrador é o professor que elaborou as questões e sua possibilidade de fala – acidez, ironia, crítica – está limitada aos interstícios, por definição totalitários, da rígida estrutura de uma prova escolar oficial. Assim, o devastador efeito literário produzido pela obra consiste na apropriação subversiva do discurso autoritário do exame, para oferecer alternativas ao leitor aluno, para além das noções de correção e verdade. Um gesto, para dizer o mínimo, libertador.

Zambra roça a poesia, aquela não linear, proposta inicialmente por Stephen Mallarmé em seu Lance de Dados (1897). Para o francês, a poesia não se limita ao verso, mas é da ordem da linguagem, da música, da tipografia e pode ser explorada de modo diverso no espaço da página. Por esta concepção, o leitor se transforma em um intérprete, no sentido musical, e o texto em partitura, como observa Ricardo Piglia em seu livro La Forma Inicial. Seguindo as lições de Mallarmé e das vanguardas que o sucederam, Zambra oferece ao leitor um papel ativo de combinador, para construir suas respostas. Na questão 18, por exemplo, pede-se ao leitor aluno para assinalar a palavra intrusa para o vocábulo família: “18) Família: a) familiares; b) herdeiros; c) sucessores; d) alfajores; e) pedofilia.” O efeito literário se dá pela suposta vacilação do aprendiz ao optar se o que não pertence ao campo semântico da família são os alfajores ou a pedofilia: nada mais eloquente. 

Muitas vezes, há frases cifradas que se formam quando o estudante, indisciplinado, resolve percorrer outros trajetos. Vejamos: os enunciados das questões de 14 a 16 formam, em espanhol, a frase: “Prometo Guardar Secreto”, pacto de fidelidade próprio das épocas de exceção. Na questão 15, o termo “Guardar” é assim mostrado: “15. Guardar: a) abrir; b) cerrar; c) copiar; d) pegar; e) fuerte”; o leitor curioso que conecte as alternativas (d) e (e) terá a frase “Pegar fuerte”, que significa “bater com força”. Infelizmente, tais ambiguidades escaparam ao tradutor brasileiro, que optou pelo termo “salvar”, desmontando a cuidadosa arquitetura de Zambra. 

Outro grande momento do livro é a parte final, em que surge o Zambra narrador. É quando o livro acerta em cheio uma das nossas misérias contemporâneas: a interpretação de texto. Há três textos e respectivas perguntas de interpretação. O primeiro relato consiste na história de alguns alunos que colam nas provas da escola e se divertem na aula de religião, contando seus pecados para um professor ateu; dentro do conto, surge outro, relatado pelo já ex-professor de religião sobre gêmeos, que desde a infância “desfrutaram – ou sofreram – do tratamento excessivamente igualitário que os pais costumam dar aos gêmeos” até a vida adulta quando tornam-se bem-sucedidos advogados corruptos. 

O leitor deve optar por seu sentido correto da história. As alternativas levam à interpretação ética dosmitido; b) Foi traumática, porque os obrigou a s personagens e, em consequência, da própria posição do leitor. Vejamos: “67) De acordo com o texto, a experiência dos gêmeos Covarrubias no novo colégio: a) Marcou seu distanciamento definitivo dos valores que seus pais lhes haviam trantomar decisões prematuras e levou-os a se distanciar irremediavelmente; c) Pouco a pouco acabou tornando-os sujeitos valiosos para a sociedade chilena; d) Transformou dois gêmeos que eram boas pessoas e amigáveis em dois filhos da puta inescrupulosos; e) Deu início a um período difícil, do qual saíram fortalecidos e prontos para competir neste mundo impiedoso e materialista.”

Tais alternativas funcionam como antídoto à precipitação irrefletida de responder, própria do mundo digital das redes sociais, no qual cada pessoa é um opinador em potencial. Ao apropriar-se da ambiguidade própria do discurso literário em alternativas, Zambra desautomatiza o ímpeto e as certezas do leitor, plantando-lhe na cabeça um “e se...” tremendamente produtivo para um tempo de tantas e tão frágeis certezas e convicções. Chamemos-lhe Fácsimil, Vestibular ou Múltipla Escolha, o livro de Zambra é uma obra necessária. 

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*Wilson Alves-Bezerra é professor de pós-graduação em estudos de literatura da Universidade Federal de São Carlos

Capa do livro 'Múltipla Escolha', de Alejandro Zambra Foto: Tusquets

Múltipla Escolha Autor: Alejandro ZambraTradução: Miguel Del CastilloEditora: Tusquets 112 páginas R$ 31,90

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