Livros de Eliane Brum e Rita Carelli lançam luz sobre o Xingu

Reportagem e romance colocam a região amazônica no centro do debate

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Por Matheus Lopes Quirino
Atualização:

O Xingu está no centro do mundo. Esse é o mote que ecoa em novas narrativas surgidas no extenso território, cuja Bacia hidrográfica se alonga do Mato Grosso, região do Alto Xingu, ao Pará, onde nasce o rio homônimo. Desde o colapso climático e o difícil ano de queimadas, em 2020, a região ganhou holofotes internacionais e destaque na mídia que nunca teve. Seca da Amazônia, crise ambiental e violência são temas cotidianos ali. Mas mesmo nas agruras, há os que resolvem voltar atenções ao coração da floresta, inspiração de sobra para duas escritoras, uma repórter, outra atriz. 

Luta de índios de várias tribos no Alto Xingu na festa do Kuarup em homenagem aos ancestrais mortos Foto: Ueslei Marcelino/Reuters

São elas Eliane Brum e Rita Carelli. Respectivamente, da lavra da jornalista e ativista, surgiu Banzeiro Òkòtó: Uma Viagem à Amazônia Centro do Mundo, relato que mostra como a construção da Usina de Belo Monte, no nascedouro do Rio Xingu, transformou os povos da floresta em párias urbanos, convertendo-os em fantasmas que vagam sem rumo por uma das cidades mais perigosas do Brasil: Altamira (PA). Seu livro é um retrato visceral da Amazônia como território incompreendido pelo próprio país, refém da lógica ultrapassada de um projeto de destruição da floresta que atravessou governos de todas as ideologias.  Já a atriz percorre o caminho do romance em Terrapreta, ao narrar o périplo de uma adolescente que viaja ao Parque do Xingu com o pai arqueólogo, após a morte precoce da mãe. Com um pé no ‘roman à clef’, Carelli estreia na ficção para adultos. Ao contar a trajetória de Ana, a autora se emociona ao relembrar reminiscências da própria vida, como as viagens com os pais quando pequena a terras indígenas e os rituais que vão se perdendo durante a vida na cidade grande.  Passado um ano das queimadas, que ainda não foram totalmente apagadas, ativistas, intelectuais e lideranças colocaram a cara no sol e protestaram contra o desmatamento. Em setembro, por exemplo, houve o Tribunal Permanente dos Povos, uma ação simbólica que visa julgar os crimes ambientais engavetados. A primeira etapa joga luz justamente no Cerrado, o bioma mais injustiçado. É o que acredita Brum, então “juíza” no evento, que tem suas sessões gravadas e disponíveis na internet.  A luta no Xingu é antiga e muitos dos problemas que eclodem hoje aos olhos de quem longe está dali são recorrentes. Grilagem, invasão de terras, poluição do rio pelo garimpo ilegal, a construção de barragens e o faraônico projeto da Usina de Belo Monte eclodiram em violência em cidades como Altamira, e é pelos sofridos retratos de quem perdeu suas terras que Brum reconstitui perfis como o de Seu Otávio, analfabeto que teve a terra tomada por Belo Monte. Ou mesmo o Parque Indígena do Xingu, no Mato Grosso, embora preservado pelos índios, é ameaçado pelo agronegócio no Cerrado, assunto que o Tribunal Permanente quer escancarar.  Duas obras distintas que se intersectam em vários momentos, Terrapreta, de Carelli, engrena a partir das perdas. Não por acaso, a garota, viajante precoce, é fragmentada logo nos primeiros capítulos ao entrar em contato com os preparativos para a festa de Kuarup, cerimônia fúnebre que corre entre junho e agosto, anualmente, em que troncos de árvores são o centro dos ritos e as índias virgens são colocadas em reclusão por causa da primeira menstruação. Os totens vegetais representam espíritos dos mortos recentes e inspiram devoção de todos do Alto Xingu.  Carelli incorpora à narrativa saberes reais e ancestrais, descrevendo com minúcias os rituais, como a lavagem do sangue, e papéis designados para cada um da aldeia, seguindo uma hierarquia. Das mulheres que cosem e são responsáveis pelo preparo do beiju, iguaria feita a partir da mandioca, aos guerreiros que estão atentos aos espíritos da floresta e às lendas, como a do surgimento do Pequi, contadas pelos mais velhos e pajés, que vivem entre o místico e o mundo terreno.  O processo de transitar entre ficção e realidade é uma espécie de espelho que o escritor coloca diante de si. Carelli conta que o processo também ressuscitou angústias há muito tempo cicatrizadas. “Eu levei uns 20 anos para chegar neste livro. Ele é bastante ficcional, mas tem aspectos autobiográficos. Eu perdi minha mãe muito cedo, aos 14 anos de idade”. “Procurei incorporar no romance vários elementos reais de quando estive no Xingu”, conta Carelli por telefone. Aos 19 anos, a atriz foi ao Parque Indígena do Xingu e começou um diário de viagem. Dele, anotações primárias, depois confirmadas, foram incorporadas ao romance, como a observação de ritos e as lendas que lá viu. “Foi um processo de redescobrir memórias que já existiam, eu não inventava um evento, ele aconteceu, fez parte da minha história, e, no romance, as partes mais intrigantes são desse caderno, são também memória”, completa.  A memória coletiva convertida em histórias que habitam o imaginário das aldeias também exerce o papel de fonte primária para as escritoras. A cultura indígena preserva suas raízes por meio dos mais velhos, que exercem papel de guardiões de línguas indígenas. Em ambos os livros, nota-se a relação estreita entre fontes, no caso de Brum, e lembranças, em Terrapreta.  “Quando eu comecei a pensar nessa viagem ao Xingu, fiquei observando os adolescentes na aldeia, o processo de reclusão da menina menstruada. Todo esse processo de amadurecimento, de entrada na vida adulta. A nossa sociedade é muito órfã de rituais. A gente tem que aprender a crescer na marra. Hoje tem toda uma juventude ligada em outras mitologias e não se tem essa referência do universo indígena”, observa Carelli.  Com seu livro adotado recentemente em um colégio paulistano, Carelli espera fazer uma ponte entre os saberes ancestrais que aprendeu e as novas gerações. No próximo dia 5, as autoras se encontram na mesa “Amazônia: um olhar de dentro da floresta”, na Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro. Outra iniciativa que propõe a tomada de consciência é a Equação da Rebelião, o Movimento EU + 1 +.  “Foi uma ideia do pescador Hélio, que foi expulso de uma comunidade de beiradeiros destruída. Ele disse que o eu sozinho não faz nada, aquele eu chama mais um, que chama outro, aí as coisas mudam. Essa equação ganhou o mundo. A Amazônia Centro do Mundo é um projeto que propõe que os centros do mundo são a natureza. A gente queria que esse deslocamento de centralidade fosse feito concretamente, convidamos ativistas do mundo todo para vir até a Terra do Meio, a floresta profunda.”, completa Brum, que conta a experiência detalhadamente no livro.  A floresta tem ouvidos e é um organismo vivo. A floresta é mulher, conta Brum, em seu livro. Uma reportagem embebida em lirismo, pois a Amazônia apoderou-se de seu corpo, seu sangue. O rigor da apuração e a frieza jornalística são preceitos pétreos na narrativa, que, logo de cara, assume um olhar de não colonizadora, estando exposta às fragilidades e metamorfoses de sua autora na floresta. “Eu cubro Amazônia há mais de vinte anos. Mas ainda tem muita coisa que eu não sei. Eu conheço muito essa região em que estou. Mas há outras Amazônias.”, explica Brum, em entrevista por videoconferência em um raro momento em que a internet estava boa, direto de Altamira. “Eu preciso estudar muito. São muitos povos, muitas línguas. Os ribeirinhos, os quilombolas, os camponeses. Esse livro é a forma de compartilhar o processo de como eu me entendi e atendi a esse chamado da floresta. As pessoas precisam vir pra cá e cobrir a Amazônia como se cobre o congresso.”

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