Livros defendem que as eleições não fazem bem à democracia

Historiador belga e professor americano propõem democracia deliberativa e seleção randômica de parlamentares

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Por Ronaldo Bressane
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As eleições gerais estão batendo à porta e logo os debates serão ocupados por questões banais: em quem votar? Como funcionarão as alianças? Quem liderará a coalizão de direita, centro, esquerda? São debates válidos, e espera-se que aconteçam, porque daqui e dali ouvimos expressões como “eleições em risco” ou “golpe de estado” – sugerindo que nossa democracia ainda está nos dentes de leite. No entanto, um debate quase nunca ouvido é: como tornar a democracia um mecanismo realmente participativo?

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Manifestantes protestam contra o Brexit em Berlim Foto: Hannibal Hanschke/Reuters

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Dois livros ampliam esse debate, um recém-lançado no Brasil e outro ainda por ser publicado nos EUA: Contra as Eleições, de David van Reybrouck (Âyiné), e Democracy When People Are Thinking, de James Fishkin (Oxford Univesity Press). Reybrouck é um premiado historiador e arqueólogo da Bélgica, país que após 2011 ficou 541 dias sem governo – recorde mundial –, dividido em duas bolhas: a socialista, maioria no sul francófono e na capital Bruxelas, e a nacionalista, no norte neerlandófilo. Não há Senado eleito desde 2014 e parte do executivo foi transferida para as administrações locais. 

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“A população entendeu que as eleições não são um instrumento inquestionável para a formação das assembleias nacionais”, escreve Reybrouck. O autor afirma que o pequeno país é um resumo da “síndrome da fadiga democrática”, que ataca todos as democracias liberais do planeta: somente 33% dos europeus confiam na UE. Nos EUA, nas eleições de meio de mandato, não compareceram 60% dos eleitores. No Brasil, a abstenção em 2014 ficou em 25% e votos brancos e nulos fica em torno de 20% nas pesquisas para 2018. 

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“Além do baixo comparecimento, há a inconstância dos eleitores. Os europeus demonstram-se cada vez menos fiéis a um partido”, escreve Reybrouck. Não apenas a legitimidade da democracia entrou em crise, mas também sua eficiência. Parlamentos levam 15 anos para aprovar leis, governos têm cada vez mais dificuldade em fazer coalizões – vejam os recentes casos da Alemanha e da Itália – e, para fazer uma simples ponte, ficam atados à dívida nacional, à legislação, às agências reguladoras, às multinacionais e aos tratados internacionais. “A impotência virou a palavra-chave do nosso tempo. Hoje o poder é uma hierarquia de maldições”, escreve. 

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“A culpa é dos políticos” é o diagnóstico do populismo – e o remédio é uma representação popular, de Berlusconi a Le Pen, passando por partidos como Verdadeiros Finlandeses e Aurora Dourada (extrema-direita grega); nos EUA temos Donald Trump e, por aqui, Doria, Bolsonaro e Lula. “A culpa é da democracia” é o diagnóstico da tecnocracia – e temos soluções como em Cingapura, país linha-dura governado há décadas por um presidente-CEO em que se pratica tolerância zero contra a corrupção e manifestações são proibidas. “A culpa é da democracia representativa”, afirmam defensores da democracia direta – o movimento Occupy, os Indignados espanhóis, os manifestantes gregos em 2011, e muitos que foram às ruas no junho de 2013 no Brasil. 

A esses diagnósticos, Reybrouck opõe o seu: “a culpa é da democracia representativa eleitoral”. Ele começa por diferenciar “eleições” de “democracia” e remete-nos aos primórdios da coisa, lá na Grécia antiga. E então o livro fica bem interessante, quando o autor nos lembra que, além de a Grécia ter escravos e restringir o voto aos homens, todas as funções da república eram atribuídas por sorteio por um ano, sem reeleição, para neutralizar a corrupção. Os cidadãos se revezavam em funções em todos os níveis. Nas financeiras e militares, porém, eram escolhidos os mais competentes. Para Aristóteles, a democracia passa pela ideia de sorteio. Não era todo o povo que tinha voz, mas um grupo sorteado – 500 dos 700 magistrados eram escolhidos ao acaso. “Democracia representativa aleatória”, define o autor. 

A seguir, o historiador nos conta que as eleições foram criadas no século 18 justamente para que a elite não perdesse o poder. “A Revolução Francesa, como a Norte-americana, não eliminou a aristocracia para instalar uma democracia, mas eliminou uma aristocracia hereditária para instalar uma aristocracia eleita.” Contrariado com o que chama de “patogênese do nosso fundamentalismo eleitoral”, Reybrouck sugere a democracia deliberativa – cada vez mais debatida no mundo acadêmico, desde que proposta pelo filósofo Jurgen Habermas. Mais importante defensor deste conceito e criador de instrumentos para colocá-lo em prática é James Fishkin, professor de ciências sociais da Universidade de Stanford, que propõe uma democracia em que os cidadãos não apenas votam nos políticos, mas discutem com eles e com os especialistas. 

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Fishkin organizou dezenas de amostras deliberativas em todo o mundo. Em pleno Texas, sorteou cidadãos para deliberar sobre energia renovável, tema pouco familiar para um estado produtor de petróleo. Essas deliberações entre cidadãos sorteados fez subir de 52 para 84 o percentual de pessoas favoráveis à utilização de energia limpa – e desde 2007 o Texas é o maior estado norte-americano em energia eólica. 

Há regras para tais sorteios. Cada projeto deliberativo deve decidir a composição do painel de cidadãos. O inconveniente da autosseleção é que só aparecerão homens eloquentes, qualificados, brancos e com mais de 30 anos. Com o sorteio, haverá mais diversidade e legitimidade. A sugestão de Reybrouck é uma mistura de sorteio e autosseleção. As experiências mais recentes foram na Irlanda e na Islândia, países com altíssimas taxas de engajamento político. “A democracia é como a argila: adapta-se ao próprio tempo. As formas concretas que toma são sempre modeladas pelas circunstâncias históricas.” Sugere então um sistema em que uma câmara de cidadãos sorteados convive com uma de eleitos, “uma terapia relacional entre governantes e governados”. E lembra: cidadãos sorteados já têm poder hoje. Toda pesquisa de opinião é baseada em amostragens aleatórias. Pesquisas tornam-se um fato político em si. 

“Os brasileiros pensam ser livres, mas se enganam: são livres somente durante as eleições; tão logo terminam as eleições, voltam a ser escravos.” A frase é velha – na verdade, é de Jean-Jacques Rousseau, está em O Contrato Social, e se aplicava ao parlamento inglês. Assim que a sociedade brasileira compreender que outras formas de democracia são não só legítimas como possíveis, podem começar a se libertar de velhas práticas políticas e aplicar toda a sua energia em novas soluções.

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Entrevista. James Fishkin é hoje o principal teórico e realizador da democracia deliberativa no mundo. Criou instrumentos deliberativos para diversos países. Em entrevista ao Aliás, ele conta suas experiências como propagador desse modelo e afirma: a democracia deliberativa pode ser aplicada em países de qualquer tamanho.

No atual modelo, as eleições são sempre um caminho para populistas ou aventureiros com dinheiro?  Ricos e famosos têm vantagens em relação a recursos para campanha e reconhecimento de seus nomes. Em campanhas superficiais, eles conseguem usufruir dessas vantagens. No caso de Berlusconi, ele também controlava a mídia.

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A democracia deliberativa pode se espraiar dos países pequenos para os grandes?  Como a aplicamos, pode funcionar em países de qualquer tamanho. Foi aplicada em decisões de nível nacional no Japão e na Coreia do Sul, na Austrália e no Reino Unido, e como projetos de mídia em nível nacional nos EUA e na UE. Usamos amostragem randômica para recrutamento, e deliberação para os recrutados. O tamanho de um país não é um problema. 

Como a democracia deliberativa melhora a representatividade da sociedade na política?  A democracia deliberativa emprega métodos de amostragem randômica, para representar todo tipo de pessoa. Mas a chave é como empregá-los, dependendo do contexto. Não os proponho a substituir nossas atuais instituições, mas sim para dar um apoio suplementar.

Como convencer os partidos políticos de que ela pode melhorar a democracia como um todo?  Podemos disseminar a ideia da democracia deliberativa aplicando-a com sucesso a problemas complicados, assim podemos demonstrar sua eficácia. É o que temos feito no Japão, Coreia do Sul, Macau, China, Dinamarca, e também EUA, Austrália, e mesmo em Uganda, Gana e Malawi – 28 países até agora. Acho que a democracia deliberativa pode funcionar tanto sob o presidencialismo quanto sob o parlamentarismo.

O que você acha do recall, quando a população decide que o governante não funciona, e, como um produto defeituoso, é devolvido?  O recall dá às pessoas uma escolha. Mas, por outro lado, pode ser uma ferramenta para populistas e motivar vozes raivosas. Na Califórnia, por exemplo, trocamos o governador Gray Davis por Arnold Schwarzenegger com um recall. É um debate considerável, sendo ou não uma boa ideia.

O atual modelo de escolha nas eleições tende a preservar eleitores em bolhas de informação? Acho que a democracia deliberativa pode facilitar a comunicação através de bolhas polarizadas e por causa disso criar melhores e mais confiáveis políticas de comunicação.

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A democracia deliberativa utiliza largamente o randômico em seu instrumental. Você crê em sorte? A seleção aleatória pode criar uma amostragem que é mais representativa do povo, de modo agregado. Não se trata de testar a sorte ou de selecionar somente uma pessoa. Trata-se de apresentar toda uma amostragem que seja representativa do conjunto da população. Não acredito em sorte, e sim em semelhanças estatísticas para que elas sejam calculadas cientificamente.

*Ronaldo Bressane é jornalista e escritor, autor, entre outros, do romance 'Escalpo' (editora Reformatório) 

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