Livros mostram como a música pode ser um antídoto contra tempos turbulentos

O historiador Ted Gioia e maestro Leandro Oliveira falam em livros sobre o poder de regeneração das composições

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Por Martim Vasques da Cunha
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Na Itália, uma rede de notas e melodias musicais se espalhou de Nápoles a Toscana, surgida não se sabe como e não sabe onde, formada por pessoas confinadas em suas casas a partir dos idos de março, devido à pandemia do coronavírus que assolou o país de maneira devastadora, e assim elas encontraram uma maneira comovente de extravasar seus temores. Passaram a cantar, das suas janelas e balcões, músicas patrióticas ou folclóricas, músicas que vinham do substrato da comunidade e que tinham três propósitos naquele instante: acalantar, aquietar e fortalecer uma população que se encontrava subjugada a um inimigo implacável e invisível.

O historiador norte-americano Ted Gioia Foto: Dave Shafer

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É sobre esse poder mágico e oculto – subversivo, dirão alguns – que o historiador americano Ted Gioia escreveu um dos livros mais originais lançados em tempos recentes: Music – A Subversive History (Basic Books, R$ 173,13, 480 págs.). Ao contrário do que muitos podem pensar, não se trata apenas de mais um tomo de história da música, daqueles chatos de ler e que são apenas panoramas de quem nasceu, quem morreu e quem compôs tal obra. Na tradição estimulante de O Resto é Ruído, de Alex Ross, Uma Nova História da Música, de Otto Maria Carpeaux e Bach – Music In The Castle Of Heaven, de John Eliot Gardiner, o petardo de Gioia tem uma tese aparentemente simples, mas que até agora ninguém ousou provar no passado: a de que a música é um agente de mudança tanto na vida individual como na coletiva – e é também uma força de transformação e de magia da realidade. Quando Gioia fala neste tipo de encanto, não se trata de uma brincadeira. Apesar do seu aspecto lúdico, para ele a música é um negócio sério. Seríssimo, neste caso específico, uma vez que o americano deixa perfeitamente claro que cada nota, cada melodia, cada harmonia e cada ritmo estão literalmente mergulhados em sangue humano. A partir da teoria do bode expiatório articulada pelo pensador francês René Girard, Gioia faz paralelos entre o uso de canções e a pratica de rituais sacrificiais, sejam eles bacanais, cultos mágicos, simpósios, guerras mundiais e, se quisermos ir um pouco além, pandemias incontroláveis. De acordo com esta perspectiva, o artista que vive da música ora é um rebelde, ora um acomodado, ora um xamã, conforme as circunstâncias históricas. Gioia defende que a grande arte só existe por causa do caos da existência humana – e a força subversiva da música está em tornar essa confusão mais palatável para a nossa mente e o nosso espírito. Eis aí a sua surpresa indiscutível – mesmo que venha sob um preço incomensurável para o ser humano que a pratica. Isso significa que a ideia que fizeram da música – em especial, àquilo que chamamos de “clássica” – é uma abstração que prejudica o seu verdadeiro entendimento. Ela se tornou um item de colecionador, um objeto de museu, que está ali para provar que “cantar uma canção” é apenas uma maneira de se afirmar socialmente, e nada mais. É justamente contra essa atitude que o livro do maestro e compositor brasileiro Leandro Oliveira, Falando de Música – Oito lições sobre música clássica (Todavia, R$ 44,90, 126 págs.), vem para corroborar os argumentos de Ted Gioia. Com uma escrita serena e elegante, ele introduz o leitor ainda neófito nesse universo aparentemente complexo, mas que, na verdade, diz muito sobre o nosso cotidiano mais humilde – e, por que não dizer?, chulo. Um exemplo retirado por acaso das páginas da obra de Oliveira comprova essa observação: desde quando você sabia que o venerável W.A. Mozart, autor de inúmeras sinfonias, concertos e óperas, celebrado a cada ano nas salas de concerto mais elegantes do mundo, é também o compositor de uma pequena pérola da libertinagem, intitulada nada mais nada menos que Leck mich im Arsch – traduzido para a língua portuguesa como o velho e bom “Lamba-me o rabo”? Ou então que o colosso J.S. Bach, o criador de um dos maiores exemplos de música sacra (a Paixão Segundo São Mateus), fez uma Cantata do Café, na qual escutamos os seguintes versos, cantados sob o ponto de vista de uma donzela: “Paizinho, não sejas tão mau/ Se eu não beber meu café,/ as minhas curvas vão secar, / as minhas pernas vão murchar,/ ninguém irá comigo casar”? Poucos sabem desses detalhes – e por um simples motivo: com o passar do tempo, a modernidade extirpou o poder subversivo da música e, portanto, a sua força para mexer com o coração humano. Mesmo assim, ela continuou a aprontar das suas. Afinal de contas, como bem escreve Oliveira, independentemente da divisão artificial entre os diferentes gêneros musicais, há um elemento importantíssimo que não pode ser esquecido na recepção da música e da arte em geral: ela trata de pessoas vivas. Em uma clara oposição às críticas beletristas de um Roger Scruton ou de um Hilton Kramer – polemistas conservadores que insistem em um “neoplatonismo” estético –, o maestro afirma que “os vivos não são meros pacientes neutros de obras de arte, mas atores em constante interação. Afinal, este é o principal predicado de se estar vivo: agir sobre as coisas. Por isso, qualquer discussão sobre a recepção da música deve levar em consideração, por necessidade peremptória, o anseio daquele que escuta”. Gioia vai além sobre o ponto abordado por Oliveira. A música é a subversão que preenche justamente esse anseio humano – um anseio que alimenta uma rebeldia saudável, porém extremamente perigosa. Não à toa que ela precisa ser controlada, até porque uma melodia é muito mais perturbadora do que um manifesto político. Uma canção pop, uma sinfonia, uma ópera se tornam consagradas somente após as instituições e as corporações canibalizá-las a seu favor, transformando-as em peças petrificadas – e desprovidas de magia. Aqui, Gioia recupera René Girard – e mostra um ciclo de criação e destruição no qual o artista precisa ser sacrificado para depois ser celebrado. Ele é o bode expiatório que sintoniza e harmoniza o ruído do mundo com a sua entrega sangrenta por meio da sua obra. O público – e, posteriormente o seu espelho sombrio, o mercado – pedem por isso sem nenhuma misericórdia. Mas o que fazer quando esse mundo se altera subitamente – em especial, após uma moléstia como o coronavírus? Se parafrasearmos o famoso verso de W.H.Auden, será que a música faria algo acontecer neste cenário tumultuado, pleno de incerteza? Gioia e Oliveira se anteciparam à cantoria feita nas janelas italianas e se contrapõem à dúvida do poeta. E por uma razão muito simples: a música é feita do trauma, da ferida do exílio, do machado que corta a cabeça de uma pessoa e se enrosca no nervo do seu pescoço. Não à toa que, logo na epígrafe do seu livro, Gioia cita ninguém menos que Bob Dylan, um dos poucos artistas que evitou o sacrifício da sua audiência cativa – e que afirmou, de maneira jocosa: “Eu aceito o caos. Só não estou certo se ele me aceita também”. Foi o que fizeram os italianos enclausurados, de Nápoles a Toscana, naqueles tristes idos de março: exorcizaram seus medos e aceitaram por completo o caos, pois era a sua sobrevivência espiritual que estava em jogo. Afinal de contas, nem só de pão vive o homem. Mas ele perdura por causa da música e das canções que guardamos dentro de nós, mesmo que a moléstia externa seja algo aparentemente duradoura. Basta entendermos esse anseio rebelde a nos sustentar quando tudo parece se dissolver na desesperança.

*Martim Vasques da Cunha é autor de 'A Tirania dos Especialistas' (Civilização Brasileira, 2019)

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