Livros revelam a importância da brincadeira para a humanidade

Um estudo novo e um clássico mostram como o lado lúdico é uma força motriz para a sociedade

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Por Marcelo Tápia
Atualização:

Dois lançamentos recentes nos permitem enxergar aspectos fundamentais – e universais – da vida em sociedade: de um lado, a “licenciosidade permitida” é abordada, já no início do livro Aristófanes – O Dramaturgo da Cidade Justa, da professora e tradutora Ana Maria César Pompeu, como uma antiga e persistente “consciência de festa” da humanidade; de outro, o livro Homo Ludens, do filósofo holandês Johan Huizinga (em nova edição revista) busca sustentar a tese de que “é no jogo e pelo jogo que a civilização surge e se desenvolve”. Certamente podemos tirar proveito dessas obras para compreendermos melhor algumas das características da humanidade e, genericamente, da cultura por ela gerada; vejamos elementos de cada uma dessas contribuições.

'Winter' (2018), do pintor polonês Piotr Fafrowicz, obra que reflete o caráter lúdico da sociedade descrito em 'Homo Ludens', de Johan Huizinga Foto: PIOTR FAFROWIC

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A primeira obra resulta da tese de doutorado da autora: por meio de uma leitura das peças de Aristófanes – “o maior comediógrafo da antiguidade, único representante da comédia antiga grega de quem temos peças completas” – postula-se, basicamente, que a “comunhão de todos os ritos de renovação existentes em todas as culturas, sejam orientais ou ocidentais” se dá pelas características dos Festivais Dionisíacos: além da mencionada licenciosidade, a burla, a embriaguez, a obscenidade, a fertilidade e a renovação, entre outras. Curiosamente na mesma época em que se realizava a mais antiga festa de Dioniso, as Anthestérias, festejamos, hoje, “o Carnaval, a maior festa popular”. Cabe lembrar, aqui, o que diz Jean-Pierre Vernant (na tradução de Joana Angélica D. Melo), em seu famoso Mito e Religião na Grécia Antiga, sobre o deus Dioniso: “Assim que ele aparece, as categorias distintas, as oposições nítidas, que dão coerência e racionalidade ao mundo, esfumam-se fundem-se e passam de umas para outras [...]”.

Esclarece-se, em Aristófanes, que a comédia, komoidía – “canto de grupos de foliões” – origina-se “dos solistas dos cantos fálicos, entoados durante o ritual dionisíaco das falofórias, procissões em que se transportava um falo de madeira, representativo do deus”. O mais antigo registro de um canto fálico encontra-se em Acarnenses (425 a.C.), de Aristófanes, uma das peças estudadas na obra (e base para a leitura das demais), cujo tema é “um apelo à paz, pois Atenas estava, desde 425 a.C., envolvida na guerra do Peloponeso”: seu protagonista, Dikaiópolis (“Cidade Justa” ou “Justinópolis”), deseja a trégua com os espartanos. Na comédia, as tréguas são representadas como vinho, próprio de Dioniso: o deus do teatro é visto, portanto, como o portador da paz. Leia-se um breve trecho de fala de Justinópolis, que Ana Maria – professora da Universidade Federal do Ceará – traduz em “cearensês”, valendo-se de notação com marcas da linguagem oral, uma vez que “a proximidade da língua falada em Atenas da dos diálogos da comédia antiga grega pode ser equiparada à expressividade oral da linguagem do homem do campo ou do matuto”:

É, tá mesmo é bom. Ó sinhô Dioniso, Que seja do teu gosto esta procissão que eu Mando segui e ofereço sacrifice cum’s de casa. Possa eu celebrá com boa sorte as Dionísia matuta, Apartado da tropa. Que as minhas trégua Eu possa celebrá bem as de trint’ ano.

Possivelmente a ideia de paz se associe à existência da “consciência da festa”, expressão proposta por analogia com a noção de “consciência do carnaval” de Mikhail Bakhtin: tal consciência se caracterizaria pela “inversão de categorias da vida cotidiana”, na qual mendigos tornam-se reis, e autoridades podem ser alvo de ridicularização; as “hierarquias e restrições da vida cotidiana são deixadas de lado por um tempo, para que as necessidades do corpo sejam satisfeitas”. Prevaleceria, então, o igualitarismo; os atos praticados pelo povo seriam “tolerados pela cultura oficial, que só a grande custo os poderia suprimir”. A “virada das ortodoxias” deixaria “traços de liberdade”. Nessa linha de pensamento, não seria impróprio pensarmos que a manutenção da paz teria na subversão temporária dos valores uma de suas sustentações. 

Aristófanes enfeixa referências às demais peças do “dramaturgo da cidade justa”, entre elas A paz, As aves, Lisístrata – aquela, bem conhecida, em que as mulheres tomam o centro político de Atenas e adotam uma “greve de sexo” – e a não menos famosa As rãs, na qual Dioniso ousa ir ao Hades, o mundo dos mortos, a fim de encontrar o poeta trágico Eurípides. Será surpreendente ao leitor a capacidade de instigação das peças do comediógrafo, inclusive para nossa percepção do mundo contemporâneo; é útil, portanto, referir-me à disponibilidade, em português, de diversas traduções depeças do autor, incluindo-se a de As Rãs, por Trajano Vieira, e a de As aves, por Adriane Duarte. Diga-se, por fim, sobre a obra de Ana Maria Pompeu, que seu conteúdo reflexivo pode sobrepor-se aos evidentes problemas de preparação e revisão de texto. 

Ao tema do primeiro livro comentado, pode associar-se a abordagem da poesia tal como se realiza no segundo: esta teria nascido, no dizer de Huizinga, “durante o jogo e enquanto jogo – jogo sagrado, sem dúvida, mas sempre, mesmo em seu caráter sacro, nos limites da extravagância, da alegria e do divertimento”. Claro que essa condição não será privilégio da poesia: para o autor, “encontramos o jogo na cultura como um elemento dado, existente antes da própria cultura, acompanhando-a e marcando-a desde as mais distantes origens até a fase atual”. O exemplo fundamental do jogo como “função social” seria a própria linguagem, o “primeiro e supremo instrumento que o homem forjou a fim de poder comunicar, ensinar e comandar”; assim, “ao dar expressão à vida, o homem cria um outro mundo, um mundo poético, ao lado do da natureza”. 

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Algo importante a se considerar, segundo o autor, é o desacerto de entender o jogo como oposto à seriedade, contraste esse que não será nem decisivo, nem mutável; “o riso, por exemplo, está de certo modo em oposição à seriedade, sem de maneira alguma estar diretamente ligado ao jogo”. E, enquanto a categoria do cômico “está estreitamente ligada à da loucura, ao mesmo tempo no sentido mais elevado e mais baixo do termo”, não haverá loucura no jogo, pois este se situaria “além da antítese entre a sabedoria e a loucura”. 

Associado em nosso imaginário à Grécia Antiga, o jogo pode ser designado, em grego, por três diferentes palavras (apresentadas no livro com alguma imprecisão de grafia): paidiá (jogo de criança, brincadeira – embora o uso do termo não se limitasse aos jogos infantis); athyrma (diversão, brinquedo, jogo, envolvendo as ideias de frivolidade e futilidade), ligada ao verbo athyro (brincar, dançar, cantar; representar comédia; jogar, divertir-se); e, por fim, ágon, que expressa o amplo domínio da destreza, das competições e dos torneios, tão importantes na vida dos gregos “que as pessoas deixaram de ter consciência de seu caráter lúdico”. 

No entanto, embora o espírito de competição tenha dominado a sociedade grega por alguns séculos, também se realizavam “os grandes jogos sagrados que uniram toda a Hélade”: mesmo em épocas tardias, os “jogos helênicos permaneceram intimamente ligados à religião”; nesse sentido, os cantos de Píndaro em honra das competições integram o quadro de sua poesia sagrada, sendo a única parte dela que resistiu ao tempo – “o caráter sagrado do ágon manifesta-se em toda parte”.

Voltando-nos de novo para a poesia – por um recorte de leitura de Homo Ludens –, diga-se que, para o autor, ela teria surgido do próprio ato ritual, “sob a forma de hinos e odes criados num frenesi de êxtase ritualístico”. Mas ela “floresce também nas diversões sociais e na intensa rivalidade entre clãs, famílias e tribos”: a poesia como “produto do imemorial jogo de atração e repulsão [...] é tão fundamental como a poesia nascida do cerimonial”. Diversas são as possibilidades de exemplo da “poesia nascida no jogo” em diferentes culturas: no arquipélago das Índias Orientais, uma “poesia social-agonística” – homens e mulheres cantam canções de troça ou desafio, algumas delas improvisadas, acompanhados por um tambor – ainda desempenha “sua função própria do jogo cultural”; no grupo Babar de ilhas do oriente sul, o que conta para a poesia é só a improvisação – homens empoleirados em coqueiros cantam troças a companheiros de outras árvores; o pantum malaio “é uma quadra de rima cruzada” – nela os dois últimos versos respondem aos dois primeiros, que evocam uma imagem ou expõem um fato; o haicai japonês, breve poema de três versos (muito conhecido no Brasil), teria se originado de um jogo coletivo de criação em cadeia, em que um jogador sucedia a outro...

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Distinguindo diferentes modos de relação da poesia com o jogo, o estudo de Huizinga postula que “a linguagem poética é um jogo de linguagem”: “na cultura arcaica, a linguagem dos poetas é o mais eficaz dos meios de expressão [...] põe o ritual em palavras, é o árbitro das relações sociais, o veículo da sabedoria, da justiça e da moral”, sem abdicar de seu caráter lúdico. A “relação entre a poesia e o jogo como linguagem secreta” – evidente no kenttingar nórdico – resistiria nas “escolas líricas modernas”, por não se perderem, nunca, “as íntimas relações entre a poesia e o enigma”.

Detendo-se, ademais, nas formas lúdicas da filosofia e da arte, bem como no fator lúdico na “cultura tardia” e na cultura contemporânea, o livro é um caminho claro de nexos humanamente tecidos entre tempos e espaços, ainda que distantes.

ARISTÓFANES – O DRAMATURGO DA CIDADE JUSTA AUTOR: ANA MARIA CÉSAR POMPEU EDITORA: GIOSTRI 220 PÁGINAS R$ 59,00

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HOMO LUDENS AUTOR: JOHAN HUIZINGA TRADUÇÃO: JOÃO PAULO MONTEIRO EDITORA: PERSPECTIVA 392 PÁGINAS R$ 69,90

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