Longo caminho até a paz

Para especialista, Barack Obama errará se forçar israelenses e palestinos a negociarem no curto prazo

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Por Lucia Guimarães
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Na última quarta-feira, um grupo de nova-iorquinos de origem palestina reuniu-se em frente à prefeitura da cidade e atirou sapatos contra um pôster de Michael Bloomberg. O motivo: no fim de semana anterior, o prefeito havia estado em Ashkelon, Israel, visitando crianças em um hospital que tinha sido reinstalado no subsolo por causa dos foguetes inimigos, disposto a deixar clara sua solidariedade à investida israelense em Gaza. Bloomberg não toma um avião cada vez que surge um conflito armado no exterior, mas sua viagem ressaltou o peso da população judaica de Nova York - o prefeito concorrerá a um terceiro mandato neste ano. Isso significa que o "lobby judaico" domine a política, sobretudo a externa, dos EUA? Para Leslie Gelb, ex-subsecretário de Estado (1977-1979) do governo Jimmy Carter e presidente emérito do Conselho de Relações Exteriores - um think tank sediado em Manhattan - , a resposta é não. "Fui testemunha, no Departamento de Estado, de várias negociações que enfureceram os israelenses, como vendas de armas para países árabes. Se você quer falar de lobby dominante, que tal o exemplo da NRA, a National Rifle Association, o lobby das armas de fogo? Qual governo que se dispôs a enfrentá-lo?", provoca. Especialista em política externa e ex-editor do jornal The New York Times, com um prêmio Pulitzer, o mais prestigioso do país, no currículo, Gelb, 71 anos, é um observador arguto dos conflitos no Oriente Médio. Embora tenha se declarado contra o arroubo de invadir o território iraquiano em 2003, ele foi favorável a um esforço internacional para derrubar Saddam Hussein e em 2006 assessoraria o senador Joe Biden, futuro vice de Barack Obama, num polêmico plano de divisão do Iraque em três, convencido de que xiitas, sunitas e curdos jamais conseguiriam conviver em paz. No caso do embate entre israelenses e palestinos, sua postura é ponderada. "Se o Hamas admitisse o direito de Israel existir, o ônus recairia sobre os judeus", acredita. "O grande problema é que não há abertura de nenhum dos lados. Se israelenses e palestinos começassem a ouvir uns aos outros, estaríamos mais próximos de uma solução." Gelb, entretanto, está longe de vislumbrar uma solução rápida para o histórico conflito. Ainda que aposte na força do time montado por Obama para gerenciar a política externa, ele diz que, antes de tudo, o novo presidente americano, a ser empossado no dia 20, deve aceitar que será um erro tentar fazer as duas partes negociarem no curto prazo. Em Nova York, Leslie Gelb falou com exclusividade ao Estado. Parece haver um consenso nos Estados Unidos de que o ataque e a invasão de Gaza foram planejados para coincidir com o fim do mandato de George W. Bush. O senhor comentou que ele foi o mais pró-Israel dos presidentes americanos da história recente - e, de fato, as manifestações de Bush de apoio à ação israelense foram mais fortes do que as de outros líderes, europeus, por exemplo, alinhados com Israel. Essa postura do presidente foi decisiva para que a ação israelense tivesse início exatamente neste período? É razoável concluir que Bush foi um fator na tomada de decisões, mas não temos informação suficiente para afirmar isso como fato. Acho que a liderança israelense fez um cálculo com base na incerteza sobre a reação do próximo governo. E qual sua opinião sobre a equipe de política externa alinhada para o próximo governo? É positiva. São todos muito inteligentes, preparados e têm graus variados de experiência. Mas, dito isso, é importante notar que nada do que enfrentaram em suas carreiras é tão difícil quanto o contexto internacional que vão enfrentar agora. Quando eu vi a equipe inicial nomeada por George W. Bush, integrada por alguém como Colin Powell, achei que eles traziam experiência para assessorar o presidente - e veja o resultado Quais são as opções dos Estados Unidos como mediadores? Barack Obama vai ter que entender que esse problema não será resolvido com um cessar-fogo. Acima de tudo, não vai ser resolvido se os americanos, de novo, forçarem os dois lados a negociar no curto prazo. Isto é um problema para se trabalhar durante anos. O senhor está criticando a iniciativa de Camp David no final do governo Clinton, em 2000, quando Arafat recusou a oferta israelense que incluía a criação do Estado palestino? Exatamente. Foi um erro tático forçá-los a negociar. Não importa a generosidade dos termos oferecidos naquela época. Arafat não tinha a menor condição de vender o acordo para a população palestina, que não estava preparada para concessões. Os termos do acordo até podiam ser os melhores já oferecidos. O que temos hoje é palestinos e israelenses mais radicalizados, mais dispostos a eleger políticos que representam posições extremas. Um lado não confia em nenhum acordo aceito pelo outro. Vamos usar a Irlanda do Norte como exemplo. O governo britânico, depois de vários fracassos, deu um passo atrás. Entendeu que era preciso investir não só na economia, mas também em instituições políticas. Você tem que engajar o público. Foram criadas associações empresariais, incentivou-se a organização das mulheres. O clima político foi transformado para que o público absorvesse a ideia de mudança... Mas a Irlanda do Norte não era armada e manipulada pelo Irã como hoje é o Hamas. Eu discordo da interpretação geral de que esta seja apenas uma "proxy war", uma guerra travada pelo Irã e Israel em território palestino. Há muito que ganhar incentivando e dando apoio concreto a palestinos moderados. Os poderes envolvidos poderiam tranquilizar Israel se montassem um programa de profissionalização da segurança para a liderança moderada palestina. E as mulheres são um fator muito importante nessa equação. Se são criadas estruturas institucionais representativas, que ampliem os horizontes sociais, a população começa a levar a sério a negociação diplomática, que inclui concessões de ambos os lados. Embora tenham comparado os riscos do conflito atual à invasão israelense do Líbano, em 2006, a liderança do Hezbollah parece bastante comedida em sua reação. Como o senhor avalia isso? Eu acho que esta guerra envolve diferenças entre palestinos de um lado e Israel do outro. E devemos fazer duas considerações: primeiro, o Hezbollah não quer se meter com a questão palestina perto das eleições libanesas. E, vamos ser francos, não há grande solidariedade com os extremistas palestinos no mundo árabe. Durante o período em que o senhor trabalhou no governo Carter era mais fácil negociar com interlocutores árabes? Não. Mas eu suponho que Barack Obama vá se dedicar ao problema com energia e com uma visão renovada das possibilidades. O senhor não acha que Israel corre o risco de perder o apoio entre o público americano quando se examina o perfil demográfico dos eleitores de Barack Obama? Os latinos agora formam a maior minoria. Um grande número de jovens sem compromisso com impasses tradicionais também se engajou na política. Esse argumento é muito válido. Ainda é cedo para saber se os jovens despertados para a política nessa campanha vão exercer influência expressiva. Mas no caso de latinos e outras minorias, que formam, na verdade, a maioria hoje, a possibilidade é concreta. O problema é que as democracias não são representativas da maioria, como gostamos de pensar. São representativas dos mais organizados. Então o senhor concorda com a alegação feita por setores liberais de que o lobby a favor de Israel tem uma representatividade desproporcional no contexto da população americana? Sem dúvida, a influência é desproporcional. Mas discordo do argumento de que os interesses de Israel manipulem e dominem a política externa americana. Fui testemunha, no Departamento de Estado, de várias negociações que enfureceram os israelenses, como vendas de armas para países árabes. Se você quer falar de lobby dominante, que tal o exemplo da National Rifle Association, o lobby das armas de fogo? Qual é o governo que se dispôs a enfrentá-lo? E o lobby de Cuba? Por que os EUA não normalizaram as relações com Cuba? Não é por questão estratégica. É por causa de Miami e duas áreas de New Jersey. Uma das principais críticas à ação de Israel diz respeito ao "princípio da proporcionalidade" - ataques com mísseis rudimentares responsáveis por um número pequeno de mortes enfrentado com bombardeio e invasão de uma força militar sofisticada, com número alto de vítimas, inclusive civis. Como o senhor vê a questão? Proporcionalidade é para advogados especializados em direito internacional, não para quem é responsável pela segurança de um país. Quando os terroristas mataram 2 mil americanos no 11 de Setembro, nós jogamos uma bomba no Afeganistão? Não, nós invadimos um país inteiro sem que houvesse grande resistência da opinião pública internacional. Proporcionalidade é um luxo para a comunidade jurídica. Como o senhor vê a cobertura do conflito realizada pela imprensa americana ? Vejo que tanto a mídia americana como a europeia são tendenciosas na crítica a Israel. A versão mais comum resume a guerra ao sofrimento dos palestinos. Os dois lados do conflito, na minha opinião, evitam dar em público a narrativa completa. Cada um repete a justificativa que lhe convém. O papel da mídia seria de investigar mais e completar o contexto. Não vejo reportagens que expliquem com independência as origens da crise. Há a questão básica de que o Hamas não admite a existência do Estado de Israel. Há o fato de que Israel criou enorme pressão para os habitantes de Gaza, limitando suprimentos e acesso à região, e com isso fez aumentar as mágoas. O Hamas intensificou a importação de armas e passou a disparar foguetes contra civis israelenses. Mas o que vemos é a gritaria pela questão humanitária. Se o Hamas admitisse o direito de Israel existir, o ônus recairia sobre os israelenses. O senhor acredita que faça falta no debate americano a presença vigorosa de intelectuais identificados com a causa palestina, como Rashid Khalidi, da Universidade Colúmbia? Quais outras vozes deveriam ser mais ouvidas? Prefiro não destacar nomes. O Khalidi, por exemplo, é extremamente inteligente e articulado e eu discordo da maioria das posições dele, porém isso não vem ao caso agora. Quando você se defronta com uma pessoa que tem uma visão alinhada com uma determinada causa, mas é inteligente e informada, não importa a distância de opiniões: essa pessoa vai fazê-lo parar para pensar. Mas quero dizer também que esse não é o momento para propaganda intelectual, slogans. Vamos deixar os intelectuais no papel deles; o que precisamos é de ação efetiva. O grande problema é que não há abertura de nenhum dos lados. Contudo é pior no âmbito palestino porque eles se sentem as vítimas. Se israelenses e palestinos começassem a ouvir uns aos outros, estaríamos mais próximos de uma solução.

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