Mais de 5 mil papéis de Giuseppe Verdi são tornados públicos

Governo italiano disponibilizou ao público documentos e rascunhos do compositor

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Por Elisabetta Povoledo
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ROMA - Enquanto trabalhava em Otelo e Falstaff, suas duas últimas óperas, o compositor Giuseppe Verdi colocou dúzias de páginas de rascunhos musicais e esboços em pastas, rabiscando em suas capas: “Queimem esses papéis”. Felizmente, seus herdeiros nunca cumpriram essas ordens. Mas há anos os acadêmicos se queixam de que, apesar de todo o acesso que tiveram a eles, esses papéis poderiam ter sido perdidos. Trancados como estavam em um baú guardado na casa do compositor em Sant’Agata, no norte da Itália, apenas especialistas selecionados podiam examiná-los, em geral a critério dos herdeiros de Verdi.

Casa de Giuseppe Verdi, em Sant'Agata, na Itália, onde os papeis do compositor estavam guardados Foto: DeAgostini/Getty Images

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Acadêmicos queixaram-se de que pedidos para estudar os papéis ficavam sem resposta. “Era intolerável que os estudiosos não pudessem ter acesso fácil ao material”, disse Sandro Cappelletto, editor do Studi Verdiani, revista do Instituto Nacional de Estudos Verdi. “Tivemos acesso aos documentos de Rossini, os papéis de Bellini. Por que 5 mil páginas de Verdi ficaram ser lidas?”

Para os aficionados por Verdi, o baú – feito em Chicago pela Marshall Field & Co. no final do século 19 – tornou-se uma espécie de Santo Graal. Rumores sobre o seu conteúdo têm sido material de lenda. Mas na terça-feira, dois anos depois que o baú foi transferido pelo Ministério da Cultura da Itália da villa de Verdi para o arquivo estatal na cidade vizinha de Parma, pelo menos parte dessas especulações serão esclarecidas. Seu conteúdo está finalmente tornando-se público.

Trancados dentro do baú havia rascunhos e esboços de 12 óperas escritas durante quase meio século, de Luisa Miller a Falstaff, bem como para obras como o Réquiem e Quatro Peças Sagradas. Elas foram catalogadas e digitalizadas e ficarão à disposição dos estudiosos. Alessandra Carlotta Pellegrini, musicóloga que examinou o conteúdo, descreveu a experiência como um exame em primeira mão da “oficina do compositor”.

O baú continha mais de 5.400 páginas, cerca de 600 das quais em branco: uma cornucópia de reflexões musicais, instruções de palco, reflexões e reconsiderações, permitindo um vislumbre do processo criativo de Verdi em ação “desde o primeiro gesto de composição, quando as ideias ainda estão fragmentárias”, disse Pellegrini, que se envolveu com o projeto quando era diretora científica do Instituto Verdi.

Há centenas de páginas referentes a Aida, Otelo e Falstaff, por exemplo – obras cuja “gênese nunca foi completamente analisada”, disse Pellegrini. Os esboços são centrais para compreender o processo de composição de Verdi, acrescentou ela. Há várias versões do famoso Credo de Iago, o que sugere que foi ponderado “arduamente”, disse ela, enquanto os fãs de Falstaff ficarão intrigados com os esboços que Verdi descartou, como a primeira versão da fuga final da ópera.

Uma página, ela disse, incluiu os rabiscos de “um Verdi envelhecido rascunhando uma passagem do Evangelho”. Além da música, ela acrescentou, “há uma vida que emerge” das folhas, uma lente sobre a humanidade do compositor.

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Eles também refletem a passagem do tempo. Nos esboços de Luisa Miller, que estreou em 1849, a letra de Verdi é a escrita na forma “muito ordenada” de um jovem, disse Pellegrini, mas se torna “muito mais solta” nos esboços de Falstaff, que teve sua estreia 44 anos depois. Muitas das páginas, ela acrescentou, são difíceis de ler: “Elas são principalmente esboços e rascunhos de trabalho”, não destinados à posteridade.

A qualidade dos papéis varia – incluindo o papel poroso e mais barato que Verdi provavelmente usou para rascunhos iniciais e as folhas mais caras, nas quais ele rabisca esboços musicais mais completos – o que poderia ajudar os acadêmicos a estabelecer um cronograma dos pensamentos de Verdi. “É uma coleção incrivelmente importante de documentos”, disse Cappelletto, editor da Studi Verdiani, que será “essencial para futuras edições críticas”.

Os herdeiros de Verdi, a família Carrara Verdi, estão menos entusiasmados com a notoriedade do baú, e menos ainda com a remoção da villa, pelo Ministério da Cultura, de uma outra coleção de documentos – cerca de 24 mil, incluindo cartas e papéis variados – depois que especialistas determinaram que a família não os estava preservando corretamente. Esses documentos agora estão sendo mantidos em caixas lacradas no arquivo estatal em Parma.

A villa de Verdi jamais foi amplamente aberta, mas os acadêmicos reclamaram que, sob a administração da família, era muito difícil ter acesso aos documentos – embora os papéis de Verdi tenham sido declarados de interesse público em 2008 e como tal deveriam ser colocados à disposição do público. O Ministério da Cultura retirou o baú da villa em janeiro de 2017, em parte como resposta às reclamações.

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“Não há substituto para documentos originais”, disse Fabrizio Della Seta, professor de música da Universidade de Pavia, em Cremona, que supervisionou a edição crítica de La Traviata há 20 anos. O acesso é “indispensável”, disse ele, e precisa ser garantido”. Angiolo Carrara Verdi, atual zelador de Villa Verdi, recusou-se a dar entrevistas. Autoridades do Ministério da Cultura que supervisionaram a transferência dos documentos, bem como funcionários do ministério em arquivos locais, também se recusaram a comentar o assunto.

Francesco Izzo, editor geral da edição crítica das obras de Verdi, observou que, apesar do mito em torno do baú, seu conteúdo não era bem um mistério completo. Vários musicólogos e acadêmicos estudaram pastas individuais e, em 2015, a Classic Voice, uma revista de música italiana que fez campanha pelo acesso aos documentos, publicou um resumo dos conteúdos. “Já tivemos uma noção bastante clara do conteúdo deste baú”, disse Izzo. Mas acrescentou: “Agora podemos aprimorar ainda mais nosso conhecimento”. / TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO 

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