Mandando pra geral

O historiador Flávio de Campos, da USP, analisa por que as arenas de futebol se transformaram numa vitrine onde todos querem seu minuto de fama, mas onde nem todas as mensagens podem aparecer

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Por Monica Manir
Atualização:

Sim, tem palmeirense que ainda não conhece o Allianz Parque, nem faz tanta questão de conhecer. Mais curioso é que esse palmeirense respira futebol na família, no bar, na rua e na sala de trabalho, onde um totem de cartolina do Marcos, o São Marcos, o recebe rindo todo santo dia. A sala fica no prédio da História da USP e exibe na porta o rótulo de Ludens, Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre Futebol e Modalidades Lúdicas, onde o mais divertido é, sem dúvida, falar do nosso esporte-mãe. Mas Flávio de Campos não está dado a comemorações. O futebol brasileiro, a seu ver, não corre solto pelo campo da democracia, pelo menos não nos moldes com que ele sonha.

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A começar pelo recente episódio das faixas exibidas pela Gaviões no seu estádio criticando a Rede Globo, o deputado Fernando Capez, a CBF e a Federação Paulista de Futebol, exibição que motivou parada de jogo e pedido do capitão corintiano para que os torcedores baixassem a bola e enrolassem os panos. “Foi uma expressão legítima, a gente precisa aprender a lidar com esses nós conflituosos”, diz. Ao longo da entrevista, Flávio vai identificando outras barreiras a um esporte mais acessível: horários de partida ingratos, racismo persistente, homofobia ainda intransponível e arenas onde impera uma disputa insana por visibilidade.

É por esse motivo, a arena-estúdio, que ele não visita a casa nova do seu time? Em parte. Há uma dose de angústia, a lembrança vívida do estádio da sua vida, que não está mais lá. Mas há também o desconforto com um conforto que não é para todos. “Não sou contra o moderno, futebol é business, mas combato a exclusão social. Com esse valor de ingresso, não se dá direito ao torcedor subalterno de negociar.”

Como se estivesse no mais alto canto da arquibancada, de onde tudo via no extinto Palestra Itália, ele faz a seguir um sobrevoo pelo futebol da modernidade.

Como viu o episódio das faixas exibidas pela Gaviões?

É uma expressão legítima de pessoas que têm todo o direito de se manifestar na arquibancada. Legítima e democrática. Precisamos aprender a lidar com isso. Um país no qual, num dia sim e no seguinte também, se achincalha com a presidente da República da maneira como se tem achincalhado, parece inadmissível proibir qualquer manifestação. Mas essa forma de ver isso, como um direito à liberdade de expressão, é muito o nosso jeito de interpretar, nós que buscamos entender esse fenômeno social. O que de fato existe ali é uma disputa por visibilidade.

Quem está disputando com quem?

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Naquela arena esportiva, que é uma arena-estúdio, onde a captação de imagens se dá através da tecnologia, tem-se uma visibilidade assentida, dominante, hegemônica, que é a da televisão. E tem-se outra, que é a expressão dessas torcidas ou de grupos dessas torcidas, que naquele clássico se manifestaram daquela maneira. Há inclusive disputa entre as próprias organizadas, e por isso o atrito dentro do mesmo clube. É a lógica dos pichadores. Por que o cara se arriscou e subiu num prédio altíssimo? Para ser mais visível. No estádio, além das organizadas, tem o setor dos Vips, o do cartão de crédito, o dos sócios-torcedores, o das tribunas e o dos jogadores. Há poucos anos houve uma discussão interessante sobre as camisetas que alguns atletas exibiam por baixo do uniforme depois de fazer o gol. Não raro eram marketing de emboscada, aquele que escapa dos patrocinadores oficiais.

Nesta semana o meia Dmitri Tarasov, do Lokomotiv Moscou, foi repreendido por exibir uma camiseta de apoio ao Putin. Pode ser inclusive suspenso.

Pois então, é exatamente este ponto: ser mais visível. Lembro que, na primeira manifestação pelo impeachment da Dilma, num domingo, havia um jogo do Palmeiras, que foi antecipado para a parte da manhã. A maioria dos torcedores, não nas organizadas, foi com a camiseta amarela do Palmeiras. Aproveitaram o espaço daquele palco para se manifestar. A Mancha Verde também se exprimiu numa de suas coreografias, aquela que alude ao velho Palestra Itália e às cores da bandeira italiana. Mas, em vez das faixas verde, branca e vermelha, só veio com as duas primeiras. Tirou a vermelha. São pequenos sinais por essa disputa de visibilidade.

Uma das faixas mais clássicas é a da “Anistia ampla, geral e irrestrita”, no jogo entre Santos e Corinthians, em 1979, que a própria Gaviões exibiu.

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Sim, alguns dizem que ela teria sido criada pela Gaviões, e a torcida teria manifestado, em 79, um posicionamento político pela anistia e contra a Polícia Militar. Isso é lenda. Não foi uma decisão da Gaviões da Fiel, mas de dois integrantes dela, o Chico Malfitani e o Antônio Carlos Fon. A maior parte da Gaviões não estava nem entendendo o que era aquela faixa. Mas tudo bem. A significação é um pouco diferente, mas legítima – aliás, superlegítima. Para quem tem algum compromisso com a democracia no Brasil, essa vale. Agora, também valem aquelas faixas que discutem os interesses da Rede Globo e de como eles colidem com os interesses legítimos de jogadores, de clubes, de torcidas organizadas e de torcedores. É um absurdo, neste momento em que estamos tentando passar tudo às claras, que joguemos para debaixo do tapete esses nós conflituosos. Existe um grande nó acerca de horários de partida tão questionáveis, do papel da televisão em relação a isso e do direito de comprar a transmissão. E é legítimo, portanto, que os torcedores pagantes possam se manifestar, com direito ao contraditório inclusive da Rede Globo, que não apresentou as faixas.

Como TV aberta, ela deveria ter apresentado?

Não vou dizer que tenho o direito de definir o que um diretor de imagem deve fazer, mas uma emissora realmente democrática apresentaria as críticas. Isso revela muito dos limites de transparência dessa emissora, a principal do Brasil, e que é significativo de outros órgãos de imprensa com orientação bastante seletiva em relação a certas questões. Acontece que, ao não apresentar esses nós conflituosos como coisas da vida, alimenta-se a intolerância no subtexto.

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  Foto:  

Por quê?

Porque isso faz com que o conflito seja retirado da pauta. Se neste momento temos tantas tensões à tona, como lidar com elas? Como aceitar a opinião contrária? Claro que estou trazendo essas questões para a política propositadamente, porque acho que há uma corrente subterrânea perigosíssima de intolerância que chegou a ex-ministros, que chegou ao Chico Buarque, a alguns jornalistas, a mim. Estou sendo ameaçado, nos espaços aos quais vou, pelo meu posicionamento. São agressões que fazem parte disso, dessa dificuldade da sociedade de lidar com os nós conflituosos.

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Voltando às recentes faixas da Gaviões, elas também têm seu viés político, não?

Sim, você tem razão, e isso fica claro na faixa contra o Capez. Ele adotou, ao longo da carreira dele, tanto na Justiça quanto na Assembleia Legislativa, discurso semelhante ao discurso malufista da Rota na rua, de mais repressão para acabar com a criminalidade. Guardadas as devidas proporções, o discurso de extinção das torcidas organizadas é semelhante. Ele as criminaliza e atende ao senso comum de que têm de ser extintas. Uma vez extintas, isso acabaria com a violência. Então por que a torcida pega no Capez? Porque ele é um adversário. Foi como quando a Thatcher morreu. Os hooligans de diversas torcidas na Inglaterra cantaram hinos contra “a bruxa Thatcher”. Essa faixa é evidentemente uma faixa de oportunidade. É seletiva, num país que está se habituando a alvos seletivos para descarregar. A questão de fundo, não explícita, é como lidar com as torcidas organizadas, qual o significado delas. O Capez foi tão truculento quanto as manifestações mais truculentas dessas torcidas.

Qual o significado delas?

Tenho tido contato com a Anatorg, a Associação Nacional de Torcidas Organizadas, e participei de alguns seminários, um deles em João Pessoa, promovido pelo Ministério do Esporte, que contou com juízes, promotores, comandantes de policiamento militar de diversos lugares do Brasil que lidam com as organizadas e com a presença delas próprias. Eu era o único da academia conversando com esse público. Essas torcidas também estão tentando se reordenar, se repaginar, se reconfigurar, com uma prática mais construtiva.

Tem algum exemplo nesse sentido?

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O Coronel Florentino, que já esteve no comando da polícia especial de estádios, tem uma experiência extremamente interessante com as torcidas organizadas cariocas. Ele apresentou um vídeo nesse seminário mostrando o acompanhamento das torcidas de Vasco e Flamengo num clássico que me fez pensar “estou no primeiro mundo”. Quatro ou cinco policiais especializados comandando 10 mil pessoas sem pancadaria. A questão é diálogo, estabelecer acordos, estabelecer combinados entre elas e comprometê-las na organização do espetáculo. Todos conhecem as lideranças das torcidas organizadas e todas as lideranças se conhecem. Esse desconhecimento é mais do público. As torcidas estão querendo visibilidade, mas estão sendo excluídas. Não estou defendendo a violência de maneira nenhuma, mas qualquer medida no sentido de coibir a violência passa por você necessariamente dialogar com os agentes, e não criminalizá-los ao ponto de eliminar a possibilidade de falarem. É redutor achar que as organizadas têm um ethos único, ou seja, a violência. O que qualquer torcida tem é rivalidade com outras, algo que faz parte de uma coisa mais complexa.

Do quê?

De uma ritualização da violência urbana, das tribos. O que se tem ali é uma dramatização social de tensões outras que acabam sendo apresentadas no espaço do futebol. Isso vai na linha do antropólogo Victor Turner, referência que está na chave da interpretação do Roberto DaMatta, primeiro grande nome dos cientistas sociais a pensar o futebol. Eles conjugam a ideia de que, em alguns países, há um esporte escolhido como o mais importante, espécie de carro-chefe da encenação de questões escamoteadas. E o futebol cumpre esse papel no Brasil. Vou te dar um exemplo: as jornadas de junho de 2013. Sim, elas foram detonadas pelo Movimento Passe Livre. Só que ele não estava sozinho. Havia outro grande grupo de movimentos sociais que se desiludiram com o Partido dos Trabalhadores e com o governo e que estavam meio órfãos. Era um grande caldo de movimentos sociais que acabou se constituindo em cima da Ancop, Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa. Ela foi uma ausência na cobertura jornalística tanto na Copa das Confederações como na Copa do Mundo. Mas vale lembrar que, antes das jornadas de junho, a popularidade da Dilma batia recordes. A eleição de 2014 era dada como barbada, e o consórcio instalado em Brasília nadava de braçada. As manifestações se iniciam em junho, e muitas referências se articulam ao futebol: padrão Fifa, as alusões aos estádios. A coreografia e as palavras de ordem nas ruas eram semelhantes às palavras de ordem e à coreografia nas arquibancadas. “Pula, sai do chão, contra o aumento do busão” é semelhante ao “Pula, sai do chão, faz ferver o caldeirão”. Tinha uma série de alusões das torcidas organizadas que estavam influenciando a gestualidade das ruas em 2013.

E o que aconteceu com a Ancop?

Ela perdeu o bonde, como o Movimento do Passe Livre. A primeira faixa do MPL foi feita no saguão aqui em baixo. Eu estava saindo de viagem e vi pintarem “Se a tarifa não baixar, São Paulo vai parar”. Bati no ombro de um aluno e falei “você está sendo pretensioso”. Isso foi em maio. Quando voltei, ouvi: “Não paramos São Paulo, paramos o Brasil”. E eles estavam certos. Eu estava errado. Mas a Ancop e esses movimentos sociais foram atropelados por agentes e por novos agrupamentos de direita, que tomaram a pauta. Há, por exemplo, uma alteração oportunista da sigla Movimento Passe Livre para Movimento Brasil Livre, MPL para MBL. A Ancop detona, mas perde, abrindo a porta para uma onda conservadora que vai ficando cada vez mais forte.

O que seria ilegítimo numa faixa aberta em arquibancada?

Intolerância, de qualquer tipo. Ilegítima é uma faixa racista, homofóbica, com preconceito regional, com preconceito social, sexista. Mas ilegítimo não significa tirar a faixa, e sim processar a pessoa. Não defendo o cerceamento, mas sim responsabilizar as pessoas que se expressam dessa maneira.

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O racismo é possível responsabilizar.

Mas veja, há algo novo na questão racial: a reação dos negros. O racismo no futebol brasileiro não é novo, vem desde o Carlos Alberto no Fluminense em 1914, o time do Vasco em 1923... Mas os atletas têm se manifestado, independentemente do grau de elaboração cultural e política que tenham. O Aranha, quando para e reage à torcida do Grêmio, por que se sente seguro? Porque os movimentos negros no Brasil cavaram trincheiras ao longo dessas últimas décadas, e são essas lutas que garantem segurança a esses atletas. Não estou dizendo que o Aranha ou o Daniel Alves tenham noção dos movimentos negros. Não importa. Existe um movimento na sociedade em que não dá para passar batido em piadinha racista, em surto racista, mesmo no futebol.

Os movimentos LGBT conseguiram criar esse caldo?

Ainda não. Esse “bicha” que é gritado nos estádios quando o goleiro adversário bate o tiro de meta, por exemplo. Eles tentam tirar o áudio nas transmissões de TV, mas vaza. Eu sempre escuto. Não se vê um jornalista, um narrador, um comentarista se indignar com isso. E como sofre um jogador tomado como homossexual. Acho que o exemplo do Richarlyson cabe aqui. Esse menino sempre jogou bem, é um atleta de bom nível. Mas lembro quando fez um gol contra o Palmeiras jogando pelo São Paulo e foi comemorar dançando um funk perto da linha de fundo, na bandeirinha do escanteio, de frente para a sua torcida. Só que a torcida do São Paulo, que estava comemorando, se calou aos poucos, enquanto a torcida do Palmeiras passou a comemorar. E começa a perseguição em relação a ele. A partir desse momento os são-paulinos pulam o nome dele quando cantam o nome dos jogadores do time. E quem passou a gritar o nome dele? A torcida adversária. O Richarlyson sai do São Paulo e vai para o Atlético Mineiro e, no ano em que o Palmeiras cai para a segunda divisão, há uma negociação em curso para o Richarlyson vir para o Palmeiras, ser titular. Dois torcedores com a camisa da Mancha Verde invadem uma reunião da diretoria com uma faixa onde está escrito “A homofobia veste verde” e ameaçam os diretores dizendo que, se contratassem o Richarlyson, quebrariam tudo ali. A diretoria do Palmeiras cede, e o time é rebaixado naquele ano. O Richarlyson, na minha avaliação, teria melhores resultados na carreira se não tivesse que lidar com isso.

Em que pé estão as torcidas gays?

Elas tentam se organizar no Brasil, mas só em redes sociais. Não têm como ocupar o espaço das arquibancadas porque são ameaçadas de morte em todas as torcidas. São a Bambi Tricolor, a Gaivotas da Fiel, a Palmeiras Livre, a Galo Queer, uma lista grande. Se vão, vão escondidos de sua orientação sexual. Ha uma intolerância tão violenta quanto essa violência mais visível nos confrontos entre as organizadas.

O Bom Senso tem ajudado os jogadores a consolidar a noção de agentes da própria carreira?

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É uma iniciativa positiva, prezo muito isso, mas acho que estão quase na linha do direito do consumidor, como é o Estatuto do Torcedor. O que me ressinto no Bom Senso é a ausência de um projeto mais consistente de reforma do futebol brasileiro, de discussão de poder dentro dos clubes, que ainda é oligárquica. Você ainda tem chefes como o Eurico Miranda, talvez o exemplo do que seja mais arcaico. Mas também no São Paulo recentemente. E não muito diferente no Palmeiras, onde a questão é estrutural, com conselheiros vitalícios, colônia italiana rançosa, que vive de comendas, honrarias e pequenos poderes, com decisões muito autoritárias, muito questionáveis em relação a técnicos e atletas. Ou no Corinthians, com o Andrés Sanchez e sua ligação com o lulismo. O Andrés Sanchez não é do PT, ele é lulista, está ligado a esse neopopulismo que tomou o partido a partir de 92, 93, um partido que fez uma copa tecnocrática, como provavelmente será a Olimpíada. Um sujeito como o Andrés Sanchez não estaria no PT até 1992. Um sujeito como o Sócrates estaria. São perfis muito diferentes, e dá conta de como a política, neste momento, articula o futebol com os interesses partidários.

O que seria a solução?

Veja, não tenho solução mágica. A minha vivência é de um observador externo, mas gostaria de ler e ouvir propostas que retomassem a experiência de democracia corintiana. Não é para repetir ou replicar, mas de retomar a participação de um contexto de virada. A minha questão é a timidez com que se ataca a cartolagem. A crítica que faço ao Bom Senso eu fazia ao Sócrates. Acho que ele não levou às ultimas consequências o que ele poderia simbolizar para o Brasil.

O que ele poderia ter feito?

Poderia ter sido um anticandidato à CBF, uma espécie de porta-voz, um Ulysses Guimarães na década de 70. Acho que faltou ao Sócrates sacar – talvez seja autoritário da minha parte dizer isso – que havia outra trajetória possível, que inclusive poderia afastá-lo do alcoolismo. Ele nunca entrou de verdade na política como poderia ter entrado, sobretudo com relação à estrutura dos clubes, das federações, da CBF e da Fifa. De qualquer forma, está tudo a nu hoje, tudo claro. Dá para ser mais contundente.