Manthia Diawara fala sobre a morte dos rituais e o vazio da modernidade em 'Em Busca da África'

Autor conta como religiões são perseguidas no território e as tradições se perdem

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Por Bruna Meneguetti
Atualização:

Escritor, cineasta, professor de estudos africanos e literatura comparada, o crítico de arte malinês Manthia Diawara passou sua vida entre Mali, Guiné, França e Estados Unidos, tendo formado uma visão de mundo singular graças a experiências traumáticas. Suas ideias sobre a África e os caminhos que o continente ainda pode percorrer estão em seus filmes e livros, como Em Busca da África, obra da década de 1990 e adaptada para o cinema em 1997, que chega agora ao Brasil pela editora Zahar. 

Nesse misto de ensaio, relato de viagem e prosa memorialística, Diawara narra sua experiência ao retornar à Guiné mais de três décadas depois de ele e sua família terem sido expulsos do país recém-independente. Nesse melancólico retorno, ele busca amigos e conhecidos e encontra uma nação completamente diferente daquela que havia deixado para trás.  Sobre a obra e sua vivência, Diawara respondeu às perguntas do Estadão.

Obra de Kelechi Charles Nwaneri, jovem artista nigeriano que incorpora em suas pinturasmitos africanos Foto: African Art Fair

O que mudou politicamente e economicamente na Guiné desde que o livro foi publicado, em 1998?

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Voltei à Guiné em 2004 para fazer um filme parecido com o livro

Em Busca da África

. Foi nostálgico, mas, honestamente, o que nós percebemos foi que retornos autênticos são impossíveis. Uma vez que você deixa um lugar, você não pode regressar jamais. Quando voltei, ninguém me conhecia mais e eu não conhecia mais ninguém. E a Guiné mudou muito. A princípio, quando eu vivia lá, o sonho era o nacionalismo, o Estado-Nação. Como um jovem, eu acreditava no que os mais velhos ensinavam sobre nacionalismo. Mas tanto para países pequenos quanto para grandes, o nacionalismo é sempre um beco sem saída. O nacionalismo pede que você olhe só para dentro e nunca para fora, para o mundo. Esse tipo de nacionalismo leva a ideologias rígidas e a violência. Retornar confirmou minha crença de que o nacionalismo leva a um beco sem saída.

 

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O senhor disse que deixou de reconhecer as pessoas quando voltou. Pode dar algum exemplo?

 

Alguns dos meus amigos, tanto no Mali quanto na Guiné, se tornaram fundamentalistas muçulmanos. Eles se ideologizaram intensamente. Então, não pudemos nos conectar muito bem. 

Quais são os pontos positivos e os negativos da ascensão da modernidade africana?

Eu acho que o Brasil é importante nisso. Glissant descreveu o Brasil como o “novo barroco”, no sentido de que o Brasil é o país que tem o passado, o presente e o futuro ocupando o mesmo espaço, e também dialogando entre si. Estar no Brasil para mim foi como estar no romance de García Márquez, Cem Anos de Solidão, onde tempo e espaço têm essa relação. Vi africanismos que as pessoas não têm mais na África, mas que existem no Brasil. Mas também se vê uma modernidade somente comparável à do Japão, de Hong Kong, de Abu Dhabi, de Dubai. Edifícios altos em lugares como São Paulo, por exemplo. Esse futurismo está ao lado do presente. A música expressa isso. A língua expressa isso. De certa forma, é uma modernidade que foi bem sucedida de várias maneiras, exceto pela distribuição de renda. Na África, o problema é que, independente de se olhar com a perspectiva marxista ou neoliberal, nós simplesmente não temos mercado consumidor. Não temos pessoas vendendo coisas feitas na África e sendo compradas por africanos, de modo a viabilizar a base da modernidade. Os colonizadores não foram capazes de prover uma modernidade viável e generosa. (...) Estou dando voltas, mas o problema é: eu ainda sou favorável à modernidade, mesmo que ela traga o materialismo. Mas nós precisamos de educação. Agora, em vez de educação, o que nós temos é a ideologia religiosa, a ideologia capitalista.

Escritor, cineasta e professor, Diawara não reconhece mais o Mali Foto: Acervo Pessoal

 

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O senhor viu no Brasil africanismos que não existem mais na África. Quais foram eles?

Tanto na literatura quanto na religião, você vê rituais iorubás africanos muito antigos. Eles não são necessariamente marginais. Na África, essa prática foi obscurecida e quase desapareceu por causa do cristianismo e do islã. Se você ouvir estações de rádio ou programas de televisão africanos, tanto muçulmanos quanto cristãos se gabam dizendo: “Nós queimamos, destruímos um templo”, se referindo a algum culto tribal africano. Mas também linguisticamente há palavras que foram ao Brasil, aos EUA, ao Haiti e que não conhecemos mais na África. A África tem de ir a esses lugares para aprender sobre algumas dessas coisas. Não apenas elas sobreviveram, mas descobriram uma forma de viver na modernidade, de se reconciliar com a modernidade.

 

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Que tipo de coisa a África perdeu com a modernidade?

Podemos definir a África por um certo poder da humanidade que poderia enxergar no escuro, que poderia ouvir a voz do vento, do fogo, da água, que poderia viajar rápido. O sacerdote dos rituais era capaz de curar doenças, mas também de proteger nossa humanidade das máquinas, pois as máquinas estão sugando essa humanidade. Havia pessoas que costumavam ouvir a voz do vento, o sussurro da terra tremendo. Elas falavam o idioma da terra. Havia pessoas que sabiam que algo estava para acontecer três, quatro dias antes de um terremoto. E isso se perdeu na África, também a ciência ocidental ainda não se desenvolveu a esse ponto. Então se perdeu dos dois lados. Porém, há sacerdotes no Brasil, no Haiti e alguns lugares da África que ainda têm isso. Agora que todos falam sobre humanidade, meio ambiente, a Amazônia brasileira, nós temos que ouvir essas pessoas. Não apenas o Ocidente precisa dessa África, mas a própria África precisa dela mesma. Onde vamos encontrá-la?

Kelechi Charles Nwaneri trata da questão da modernidade que soterra os mitos em suas pinturas Foto: African Art Fair

 

Como ficou a ideia de universalidade com a ascensão das políticas identitárias?

Essa é uma questão importante porque agora todos estão lidando com políticas identitárias e decolonialismo. Na França, particularmente, o racismo é tão grave quanto em qualquer outro país, embora eles tenham a República e os valores universais, e eles não queiram discutir questões identitárias por acreditar que as identidades dividem. Já nos Estados Unidos, as coisas se desenvolveram majoritariamente no padrão de comunidades: a comunidade negra, italiana, judia. Então eles votam de acordo com a identidade. As pessoas criticam isso também, eu incluído. Eu não sou preto toda a minha vida. Tenho mais de uma identidade, posso ter várias. A questão é como você lida com isso individualmente. (...) Édouard Glissant nos ensina como lidar com isso. Sigo seus ensinamentos. Glissant é contra identidades como regras, identidades fixas. Ele é a favor de identidades relacionais. Sua identidade é uma baliza, porque depois de cada relação com cada pessoa, cada ideia, cada filme, você se transforma. Então essa identidade relacional é mais importante por não ser fixa, ela é sobre um ser humano entrando em contato com o mundo, mudando com o mundo e também mudando o mundo.

Pintura deKelechi Charles Nwaneri, jovem artista com destaque em feiras no exterior, como a de NY Foto: African Art Fair

Há uma atenção maior para a literatura africana no mercado editorial?

Sim. Nos últimos anos uma nova literatura surgiu na África ou de descendentes africanos escrevendo em francês, inglês, português, etc. O que acontece nessa geração é que a África deles não é mais a minha África. Muitos dos escritores cresceram na América, na Europa e estão reivindicando a África. E a África que eles estão mostrando para nós vem da visão europeia e americana, mas também da visão africana. Eles estão mostrando a mobilidade da África no mundo. (...) Esses jovens têm muitas identidades, eles são muito africanos mas também muito ocidentais, e eles se assumem dessa forma sem problema algum enquanto a minha geração sempre tentava buscar a verdade independente de qual fosse a verdade e acabávamos nos perdendo. A literatura contemporânea vinda da África e de escritores descendentes de africanos cujos pais podem ter saído da África por migração econômica é realmente bela. 

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