Mão de gato

Na solidão da cabine Sarney até ensaiou ‘13’, mas saciou a sede do ressentimento na água fria da vingança e cravou ‘45’

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Por Carlos Melo
Atualização:

Insondável a alma dos homens. Seu sentido, desejos mais íntimos e ressentimentos guardados, escondidos mais secretos. Insondável ainda mais a alma dos políticos. Seus cálculos, sua razão, o jogo que jogam de olho no futuro. José Sarney, ex-presidente - presidente pelas mãos do destino padrasto - é um desses. Poeta e político, chefe de clã, patriarca no ocaso do poder e da vida política, se não da vida de verdade. Do alto da experiência e dos ombros cansados, Sarney é obrigado a enxergar um Brasil diferente do Brasil de seus olhos: a oligarquia sequestrada pelo país que se modernizou, sem superar o arcaico, resiste como pode. Guarda sentimentos e metáforas, contemplando o mundo com uma dor especial.

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Tipo de personagem do García Márquez que queria ter sido como escritor (e não foi), de terno claro, não mais jaquetão, espelha um desses coronéis dos confins, dos rincões. Na sua Macondo pessoal, Sarney agora vai sem mais saber para onde. A luz se apagou. Poder-se-ia parafrasear Drummond: “E agora, José? Pego assim de calças curtas, adesivo de Dilma na lapela, voto em Aécio na ponta dos dedos?”. E agora Sarney: será verdade? Será montagem? Será maldade? Será justiça? 

Maledicência boa é aquela que pega porque o maldizer e o maldito fazem sentido. Se Sarney apertou mesmo o 45 de Aécio naquela desafortunada cabine que deveria ser indevassável é quase secundário. O fundamental é que poderia tê-lo feito - por que não? Teria motivos para fazê-lo. O caos partidário permite que o fizesse. O cidadão comum conclui: “Pode não ser, mas é possível que seja”. O fato é que “a política ama a traição e odeia o traidor”. 

Pessoalmente, teria motivos. Votar em Aécio é de algum modo reverenciar Tancredo, cuja desgraça pariu o Sarney democrata e deletou o ex-presidente do PDS - partido da ditadura. O espírito do presidente morto sem posse vaga entre mundos e na memória de Sarney. Eleger o neto seria apaziguar duas almas, ajustar contas, saldar a dívida histórica e devolver à família Neves o que foi usurpado pelo destino. O coração do político e do poeta bate nesse diapasão - ressentimento, interesses, razão, reminiscências, gratidão. Hesita: votar em Aécio, por que não? 

Também é verdade que sua proximidade com Lula, Dilma e o PT não foi de boniteza, mas de precisão. Conciliação forjada por interesses complementares, na troca lancinante de governabilidade por cargos, de poder por apoio. Simples, embora impensável no mundo de ontem. Viável porque o PT de hoje, descomedido, cavalga nos campos vastos da oligarquia e confraterniza nos palácios amplos do coronelismo regional. Mas, mesmo assim, dois mundos distintos, soldados pelo pragmatismo, como o visgo que prende passarinho pelos pés impondo-lhe a imensidão da gaiola.

E há os cálculos dos políticos... Ah, cálculos os mais estranhos da idiossincrasia de quem respira política e processa a equação das vantagens e desvantagens de cada configuração de poder. A eleição apertada de Dilma, naturalmente, embaraça a presidente. Joga-lhe nos braços a dependência e impõe-lhe as regras da coalizão. Mesmo sem mandato, sem tribuna e sem Maranhão, Sarney ainda é chefe de partido. Possui recursos, influências, mandatos que comem em suas mãos. A Dilma raquítica de votos e o PT fragilizado de lambanças fortalecem o PMDB nas contendas, na repartição de cargos e recursos que marcam a política em geral e demarcarão mais ainda o segundo mandato da presidente, debilitado pela disputa acirrada, pela sociedade dividida e divergente que as urnas revelaram. Brasil cuja eleição nunca acaba. Terra das ofensas e da cizânia que não cessam. O perrengue de Dilma interessa, é claro, à oposição. Mas também a amigos desse tipo.

Interessaria a Sarney - como diz, ex-presidente sem rancor - saciar a sede do ressentimento na água fria da vingança. O Maranhão que perdeu para Flávio Dino (PCdoB) ainda lateja como um braço que se foi. É natural que a mágoa aconselhe a desforra ao PT que lhe faltou. Nem que seja por seu voto, seu único e intransferível voto, ele esbraveja por dentro. Numa represália íntima, dará o troco. Sim, a aldeia sempre conta, e o fígado nessas horas é soberano. Destilado, o fel corre pelas veias. Na desgraça de Roseana, no Complexo Presidiário de Pedrinhas, a hecatombe da dinastia. E o PT vibrou por dentro. Sem apoio, a governadora nem se arriscou ao Senado. O pai resignou-se por fora. Renunciou à vida parlamentar. Mas, por dentro, a política fica e pulsa ainda uma vez.

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É significativo que o ex-presidente colasse o adesivo de Dilma na lapela direita do paletó, longe do coração. Caminhou para a urna burocrático e cerimonial, na expressão sem cor. Acenou e até ensaiou apertar o 13. Mas com seu íntimo se confrontou. Longe dos olhos do povo, o movimento das mãos foi mais forte: digitou 45, “o neto de Tancredo”. Sem distância entre intenção e gesto. Apenas o cálculo, as reminiscências, o ressentimento e a solidão do tempo que se foi e do tempo que se esvai.

* Carlos Melo é cientista político

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