Mãos de fôrma

Bonecas de barro tiraram dona Isabel da pobreza do Jequitinhonha e lhe deram fama. Ela morreu aos 90

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Por Elvira Lobato
Atualização:
Adeus. Trabalhava não mais por dinheiro, mas pela necessidade vital de produzir Foto: UFMG.BR

Dona Isabel Mendes da Cunha teve uma vida extraordinária. Analfabeta, criou quatro filhos com a extrema dificuldade das mulheres pobres do Vale do Jequitinhonha. Tirou seu sustento do barro e com ele criou obras de arte que a projetaram para o mundo.

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Ela morreu dia 30, aos 90 anos, em Santana do Araçuaí, pequeno lugarejo do norte de Minas Gerais. Era profundamente ligada a sua terra e ao modo simples de viver. Trabalhou até o final. Não mais por urgência financeira, mas pela necessidade vital de produzir.

Evangélica e muito religiosa, dona Isabel teve diagnosticado um câncer avançado no intestino há apenas três meses e, segundo as filhas, recebeu a morte com tranquilidade. Quando saiu de casa para o hospital, dois dias antes de morrer, pediu aos filhos que não se desesperassem e dessem continuidade a sua obra. 

Ao contrário de muitos artistas populares que não são reconhecidos em vida, ela ganhou notoriedade e teve suas obras valorizadas relativamente cedo. Uma boneca de sua autoria, feita sem ajuda de terceiros, chega a custar R$ 35 mil em São Paulo e as peças devem se valorizar ainda mais após a morte da artista.

Dona Isabel começou a ficar conhecida nos anos 1970, quando a Codevale (Comissão de Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha, do governo mineiro) fez um trabalho de longo prazo de estímulo ao artesanato local. Até então, produzia utilitários (potes, jarros, panelas) e presépios de barro.

Em 1972, o francês Jacques Bisilliat, sua mulher, a fotógrafa Maureen, e o arquiteto Antônio Marcos Silva percorriam o interior do Brasil em busca de obras de arte popular para a galeria O Bode, que estavam abrindo em São Paulo, quando se depararam com os trabalhos de Isabel, em uma feira em Teófilo Otoni organizada pela Codevale.

Incentivada pelo francês, dona Isabel começou a esculpir as bonecas que a tornariam famosa. Em 2004, ganhou o prêmio Unesco de Artesanato da América Latina e Caribe, de US$ 5 mil, com uma boneca em cerâmica retratando uma mãe amamentando o filho.

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“A riqueza dos detalhes e a precisão do acabamento são o diferencial da obra de Isabel. As feições das bonecas transmitem dignidade e cada uma tem característica própria, distinta das demais”, diz Maureen Bisilliat, que acompanhou o trabalho da artista por mais de 20 anos.

Sua predileção era retratar noivas vestidas para o casamento, mulheres em trajes de passeio e mães dando de mamar aos bebês. O que há de comum entre as peças é a elegância dos cabelos penteados com esmero, ornamentos na cabeça, brincos e pulseiras, enfeites nos vestidos coloridos com uso de barros de diversas cores e pigmentos extraídos de raízes e ervas.

Outro destaque são os olhos, que parecem fixar um ponto no infinito. De origem mestiça (avó índia, mãe negra e pai de olhos claros), a artista tinha predileção por olhos azuis, por causa do pai.

Conheci dona Isabel há sete anos. Cheguei sem avisar à casa dela. Viajava de férias pelo Vale do Jequitinhonha, conversando com artistas locais e, na última hora, incluí Santana do Araçuaí no roteiro. Deixei a rodovia Rio-Bahia e percorri 11 quilômetros até chegar à casa da artista: uma construção simples, no final de uma ladeira. Passamos várias horas ao lado do forno de barro que ela construíra, conversando sobre a história dela, seu método de trabalho e suas fontes de inspiração.

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Dona Isabel não teve bonecas na infância. Simulava bonecas com sabugos de milho enrolados em trapinhos e, mais tarde, passou a esculpi-las em barro para brincar. As figuras saíam de sua imaginação, dos sonhos e das lembranças. Perguntei se usava fôrmas para esculpir. Exibindo as mãos, respondeu: uso duas.

A mãe fazia potes e panelas de barro para ajudar no sustento da casa; observando-a, aprendeu o ofício. Dona Isabel casou-se com um vaqueiro e teve quatro filhos: Maria Madalena, Amadeu, Glória e Rita de Cássia. Ficou viúva jovem e lutou muito para criar os filhos. Apenas Rita de Cássia, a caçula, não seguiu os passos da mãe.

Dona Isabel repassou seus conhecimentos aos que pediram sua ajuda. Pelo menos 30 artesãos aprenderam com ela e produzem peças de barro em Santana do Araçuaí. Eles têm uma associação e uma loja para exposição e venda dos produtos. 

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Segundo a filha Maria Madalena, dona Isabel trabalhou até setembro e deixou três bonecas e algumas cabeças em fase de acabamento. Muito abalada, a filha não sabe se concluirão as peças.

Dona Isabel tinha consciência do valor de seu trabalho. Cobrou R$ 8.500 pela última encomenda. Mas, com o avanço da idade, levava vários meses para completar uma peça. 

Manteve a vida simples por opção, pois conseguiu ajudar filhos e netos com o produto de seu trabalho. A neta Andreia estudou belas artes na Universidade do Estado de Minas Gerais, e a homenageou casando-se vestida exatamente como as noivas que a avó retratava. 

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