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Mário Palmério mostra encontro da política com o sertão em sua obra

Sucessor de Guimarães Rosa na ABL demonstra interação nem sempre pacífica entre o coronelismo e o Estado em 'Vila dos Confins' e 'Chapadão do Bugre', clássicos que retornam às livrarias

Por André Cáceres
Atualização:

O sertão é um dos protagonistas literários de 2019. Além de Euclides da Cunha ter sido homenageado na 17.ª edição da Flip, reedições importantes restauraram nas prateleiras a presença de autores que ajudaram a concretizar o imaginário sertanejo, como Guimarães Rosa, cuja obra-prima Grande Sertão: Veredas ganhou uma nova edição pela Companhia das Letras, e Mário Palmério, que estava fora de catálogo há anos até a Autêntica publicar Vila dos Confins e Chapadão do Bugre, seus dois romances regionalistas fundamentais.

Noite de luar no povoado do Sítio do Mocó, próximo ao Parque Nacional da Serra da Capivara, no interior do Piauí Foto: Tiago Queiroz/Estadão

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Esse trio revela, por meio de suas obras, três facetas distintas do que se convencionou chamar de “sertão”. Euclides aborda o tema com um verniz científico e exotismo; Guimarães investe na aura mística de um sertão universalizante; e Palmério se atém majoritariamente à dimensão política do interior do Brasil, e com conhecimento de causa: além de escritor e educador, foi eleito deputado federal três vezes por Minas Gerais. 

É precisamente o embate entre o mundo vil da política e a paisagem rústica do sertão que ele retrata em seu romance de estreia. Vila dos Confins foi lançado originalmente em 1956, mesmo ano de Grande Sertão: Veredas. Essa coincidência, aliás, não é a única: Palmério (1916-1996) assumiu a cadeira 2 da Academia Brasileira de Letras em 1968, sucedendo justamente o conterrâneo Guimarães.

A premissa do livro é simples: às margens do fictício Rio Urucanã, a Vila dos Confins acaba de se emancipar, e o deputado Paulo Santos percorre o vilarejo para angariar votos para as primeiras eleições municipais da nova cidade. Palmério desnuda as entranhas da política da época – não tão diferente da contemporânea –, o sertão do voto de cabresto, das fraudes eleitorais, das emboscadas políticas e dos jagunços pagos para defender coronéis que só desejam se perpetuar no poder. Seu narrador, adotando uma linguagem que preza pela precisão nos trejeitos orais da região, não perdoa: “E agora, a maldita política! Nem mal acabava uma eleição, inventavam outra…” 

O pleito se dá entre o coronel Chico Belo, cuja família tiraniza a região há anos, e João Soares, recrutado por Paulo Santos para representar os interesses de seu partido, a União Cívica. O primeiro terço do livro consiste basicamente no périplo do deputado pelas fazendas dos Confins convencendo – nem sempre por vias éticas – seus antigos compadres a se candidatar a cargos na administração do novo município.

O protagonista, que a princípio parece bem-intencionado, vai se revelando aos poucos apenas mais uma das engrenagens do sistema: “Paulo esfregava na cabeça, como para fazê-la funcionar, a toalha de saco de farinha de trigo. Não estava gostando daquilo. Importante para um político, andar sempre com a memória em dia: guardar o nome do eleitor, o da patroa, se possível até o dos meninos.”

Para combater o corrupto coronel Chico Belo, a União Cívica emprega meios pouco ortodoxos – peça-chave para o resultado da disputa, o cabo eleitoral Pé de Meia percorre os Confins cadastrando eleitores, ensinando-os a assinar o próprio nome e comprando seus votos. Os fins justificam os meios para Paulo.

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Embora seja um retrato do passado, a obra tem trechos incandescentes de tão atuais, especialmente no Brasil do presidencialismo de coalizão: “Antigamente era que adversário morria adversário; hoje, não: com essa balbúrdia de tanto partido, nenhum vence sem coligação. Veja como tudo tem mudado: nas eleições passadas, nós nos aliamos aos democratas para vencer os liberais; nas últimas, nos unimos aos liberais para derrotar os democratas; agora, o boato é que os democratas estão se aproximando dos liberais para acabarem com a gente”, explica Paulo a seu candidato. 

O escritor e imortal da ABL Mário Palmério, autor de 'Vila dos Confins' e 'Chapadão do Bugre' Foto: Acervo Memorial Mário Palmério

Na tese Nos Confins dos Chapadões Sertanejos: Pensamento Geográfico em Mário Palmério, a mestre em geografia pela UFU Naiara Cristina Azevedo Vinaud analisa brevemente a atuação parlamentar do autor, localizando-o na mesma tradição de Graciliano Ramos, outro autor fundamental para o ideário do sertão, e que foi prefeito de Palmeira dos Índios, Alagoas, entre 1928 e 1930: “Os discursos de Mário Palmério na Câmara dos Deputados permitem vislumbrar um político combativo e destemido o bastante para dar voz às denúncias apresentadas por seus eleitores. O deputado reivindicava, tomava atitude diante dos fatos que considerava injustos, propunha articulações para promover reformas de bases a fim de que o estado de direito não tivesse de disfarçar suas fragilidades, voltando-as contra o sertão e seus habitantes, ou contra aqueles que, por ousarem discordar, eram rotulados de comunistas.”

Em sua obra, Palmério pinta um panorama polifônico de como a política se insinua na vida do campo, sempre sob o signo da ambiguidade entre civilização e barbárie: as eleições, símbolo da democracia, suscitam o lado mais brutal do vilarejo. Se esse contraste é nítido na suja disputa eleitoral de Vila dos Confins, torna-se diluído em Chapadão do Bugre, de 1965. 

No romance, José de Arimatéia é um dentista ambulante que se fixa na fazenda de Tonho Inácio, um dos principais coronéis da região fictícia que dá nome ao livro, e se enamora da jovem Maria do Carmo. Já de casamento marcado, o protagonista surpreende sua noiva traindo-o com Inacinho, filho do dono da fazenda. 

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Tomado pelo anseio de vingança, Arimatéia mata-o a machadadas, foge dos jagunços de seu pai e torna-se pivô de uma rede de vinganças e carnificina entre os principais coronéis do Chapadão, que só encontra limites quando o juiz Damasceno Soares intervém na situação. Mais uma vez, Palmério opõe o poder informal do coronelismo ao institucional do Estado brasileiro, ausente na região, lutando para se estabelecer em um sertão indomável – como em Canudos. 

Essa clara alusão à dualidade civilização/barbárie é sintoma do período em que Chapadão do Bugre foi escrito: pouco depois da inauguração de Brasília, quando um paradigma positivista de progresso imperava no Brasil, e a cultura valorizava a razão geométrica da arte concreta e a suavidade sonora da bossa nova, praticamente antíteses à aridez rústica do sertão. Ao explorar os pontos de intersecção entre a aspereza do interior do Brasil e a ordem cartesiana e racional, embora cruel, da política, Palmério nos apresenta o coração selvagem de um país que ainda tateia sua identidade.

Lançamentos sobre o sertão

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Diversas obras a respeito do sertão movimentaram boa parte dos lançamentos literários das últimas semanas em função da Flip. O livro Sertão, Sertões (Elefante), organizado por Joana Barros, Gustavo Prieto e Caio Marinho, reúne artigos de nomes como Antonio Candido e Aziz Ab’Saber, que discutem a construção do sertanejo no imaginário nacional e o caráter geográfico da região.

Duas importantes reedições sobre o tema também chegam às livrarias: No Calor da Hora – A Guerra de Canudos nos Jornais (Cepe), obra clássica da crítica literária e professora emérita da USP Walnice Nogueira Galvão, destrincha a cobertura jornalística do episódio pela imprensa brasileira, especialmente na Bahia e no Rio de Janeiro. Já o livro A Terra, o Homem, a Luta – Um Guia de Leitura de ‘Os Sertões’, de Euclides da Cunha (Três Estrelas), escrito pelo professor de teoria literária da USP Roberto Ventura (1955-2002) – que também assina Euclides da Cunha: Esboço Biográfico (Companhia das Letras) –, é outra obra importante que estava fora de catálogo e foi recuperada.

Os Sertões, de Euclides, que motivou todos esses estudos, ganhou nova edição pela Penguin, com textos inéditos de Lilia Moritz Schwarcz, André Botelho e Luiz Costa Lima, e pela Ubu, com 14 textos de fortuna crítica de intelectuais como Gilberto Freyre, José Veríssimo e Antônio Houaiss. O clássico livro-reportagem produzido por Euclides da Cunha a partir de sua reportagem da Guerra de Canudos para o Estado também foi adaptado para os quadrinhos por Carlos Ferreira e Rodrigo Rosa e disponibilizado em formato de audiolivro na plataforma do Google Play. / A.C.

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