Marketing em torno de artistas mortos movimenta cada vez mais dinheiro

Resgatar carreiras ofuscadas pela história da arte se tornou um novo filão do mercado

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Por Redação
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Sophie Taeuber-Arp pode ser a artista desconhecida mais influente de todas. Suas alegres e coloridas pinturas geométricas, as elaboradas coreografias e os dons de escultora, estilista e arquiteta a colocaram no centro do movimento dadaísta dos anos 1920. Foi próxima de Jean Cocteau e Marcel Duchamp. Então, em 1943, ela morreu intoxicada com monóxido de carbono expelido pelo forno mal instalado na casa de outro artista na Suíça. Tinha 53 anos.

'Composição em Machas Quadrangulares, Policrônicas, Densas' (1921), de Sophie Taueber-Arp Foto: Stiftung Arp e V./Rolandswerth

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A carreira dela foi eclipsada pela do marido, Hans Arp, que viveu até 1966. O mercado da artes praticamente a ignorou. Nos vinte e cinco anos mais recentes, apenas sete de seus quadros e seis esculturas foram colocadas à venda. Em meio a preços cada vez mais exorbitantes, a presença dela nos leilões é a mesma desde 2003.

Tudo isso deve mudar. A importante galeria comercial Hauser & Wirth passará a representar o patrimônio artístico de Sophie. O passo inicial será uma importante retrospectiva itinerante prevista para o segundo trimestre do ano que vem, se a pandemia permitir, no Kunstmuseum Basel. Seu próximo endereço será a Tate Modern, em Londres, antes de rumar para o Museum of Modern Art (MoMA), em Nova York, em 2022.

A construção e definição consciente dos legados dos artistas é uma tendência recente. Durante séculos, a fama artística foi um futuro incerto, dependendo da mitologia em torno do artista e de suas relações pessoais, além do talento. Johannes Vermeer permaneceu desconhecido por dois séculos após sua morte, em 1675, até Édouard Manet e Camille Pissarro repararem no seu discreto olhar de pintor. Vincent van Gogh tinha vendido apenas uma de suas obras antes de se matar em 1890, mas tornou-se posteriormente um grande astro. Em comparação, o inglês G.F. Watts, que fez a estátua equestre chamada “Physical Energy”, no Hyde Park, foi um dos artistas mais famosos da era vitoriana. Morreu em 1904, e sua reputação esteve em queda desde então.

Uma mudança importante ocorreu depois que Mark Rothko, um dos grandes expressionistas abstratos americanos, cometeu suicídio em 1970. Em vez de buscar ajuda em separado para seu legado artístico, Rothko fez um acordo com seu conselheiro financeiro, que, após a morte do artista, vendeu boa parte da obra dele a preço baixo à Marlborough Gallery. Os filhos de Rothko o processaram, e a Marlborough e os representantes do artista acabaram condenados a pagar indenização de US$ 9,2 milhões. Mas foi necessária mais de uma década até que a negociante de Rothko, Pace Gallery, começasse a representar seu patrimônio artístico. Em 12 exposições realizadas desde então, o fundador da Pace, Arne Glimcher, demonstrou a amplitude das visões de Rothko, do seu surrealismo aos seus murais mais sombrios. Em 2012, a Christie’s vendeu uma das obras dele por US$ 86,9 milhões.

A morte lhes cai bem

O caso de Rothko destacou o risco que os artistas correm ao não pensar com a devida clareza e no momento oportuno a respeito da vida após a morte. As galerias começaram a orientar os herdeiros das pessoas que elas representavam enquanto esses artistas ainda estavam vivos. Com a grande prosperidade do mercado de arte contemporâneo a partir do pós-guerra, o patrimônio dos artistas passou a movimentar cada vez mais dinheiro. Hoje em dia, algumas galerias procuram ativamente o trabalho de representantes do patrimônio artístico; algumas chegam a seduzir os representantes dos artistas para levar patrimônios prometidos a outras galerias. Aproximadamente um terço dos cerca de 90 artistas representados pela Hauser & Wirth está morto; a galeria estabeleceu acordos de representante do patrimônio de 12 artistas nos 4 anos mais recentes. A Pace representa 30 deles, incluindo o de Rothko; a David Zwirner representa 24 e a Gagosian, 16.

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Antes de pensarem em um itinerário de exposições para mostrar as obras de artistas mortos, as galerias encomendam um levantamento de especialistas para definir exatamente o contexto e localização de cada peça. O objetivo é garantir a existência de um suprimento para venda ou “colocação no mercado", como elas preferem chamar a atividade essencial de garantir sua representação nos melhores museus e acervos particulares.

Sua contribuição mais criativa está em conjurar um “contexto” para os mortos — criando um narrativa para o público de hoje, ajudando-os a reavaliar o passado com o olhar do presente, para que os artistas se encaixem em um panteão conhecido. “A história da arte gosta de rotular”, diz Iwan Wirth. “Se as pessoas não conseguirem encontrar um rótulo para a arte, fica difícil. É preciso contar uma história.”

Para ajudá-la no desenvolvimento de contextos interessantes, a Hauser & Wirth representa conjuntos de atletas relacionados entre si, como Sophie Taeuber-Arp, o marido dela e Max Bill (em cuja casa ela morreu). A Zwirner é especialista em estabelecer elos e influências, atraindo colecionadores com os quadros azuis de Ad Reinhardt, a geometria monocromática de Josef Albers, as cinzentas esculturas de metal corrugado de Jan Schoonhoven e o minimalismo de Donald Judd e Dan Flavin, cujos patrimônios artísticos estão no portfólio da galeria.

A Gagosian usa seus contatos para criar exposições dignas de museus dedicadas a determinados períodos da produção de um artista que talvez não tenham recebido o devido destaque. A exposição de 2009 da série“Mousquetaire”, de Picasso, há muito ridicularizadas como rabiscos finais de um velho preguiçoso, transformou nossa forma de olhar para essas obras (muitas delas feitas em um dia). A galeria não representa o patrimônio artístico de Picasso, mas é próxima de seus herdeiros. Com os colecionadores estimulados pela Gagosian a desejarem obras do período final de Picasso, os preços desses quadros explodiram. Em média, as obras alcançaram valores 66% maiores na década após a exposição da “Mousquetaire” do que na década anterior a ela.

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Com frequência, as galerias recebem uma quantia fixa para representarem um patrimônio artístico. Conforme se tornam procuradas pelos interessados nas obras de um determinado artista, ganham também comissões negociando a compra ou venda dessas peças. Desde 2018, quando a Zwirner assumiu o patrimônio artístico de Joan Mitchell (morta em 1992), a galeria já vendeu mais de 20 dos quadros dela, quase metade consignada ao patrimônio e o restante por outros colecionadores. No momento, o valor recorde de uma obra dela em leilão é US$ 16,6 milhões, sendo que antes da intervenção da Zwirner esse preço mal chegava a US$ 10 milhões.

Os preços são apenas uma forma de medir o impacto da gestão patrimonial. Outra é a exposição — ou falta dela. Scott Burton, um inovador escultor americano, deixou seu patrimônio artístico sob responsabilidade do moma quando morreu de aids, em 1989. Mas o museu quase nunca promove seu trabalho, e hoje ele foi praticamente esquecido. Clyfford Still, um grande expressionista abstrato e temperamental, evitava os negociantes e insistia em vender ele mesmo suas obras. Quando morreu, em 1980, deixou 825 pinturas e mais de 1.500 obras no papel para a cidade americana que construísse um museu exclusivamente para ele (estipulando que este não poderia ter loja nem café). Por mais de 30 anos suas obras permaneceram trancafiadas; foi só a partir de 2011, quando foi inaugurado o Museu Clyfford Still Museum, em Denver, que seu trabalho passou a ser exposto com regularidade. Mesmo assim, praticamente não há interessados em comprar o trabalho de Still.

Na sua busca por valorizar os patrimônios artísticos e a reputação dos artistas, o foco das grandes galerias tem estado nos colegas do expressionismo abstrato de Still, os pouco valorizados modernistas italianos e as brasileiras do século 20 que agora se tornam conhecidas pelo mundo. O resultado ampliou o interesse pelos artistas vivos e deu início a uma busca entre os mortos por candidatos a receber o mesmo tratamento — como o movimento japonês Gutai, do pós-guerra, ou artistas americanos negros antes esquecidos que agora recebem mais destaque. “Estamos observando oportunidades que nunca existiram antes”, diz Allan Schwartzman, conselheiro de arte que mora em Nova York. “Estamos apenas começando.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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