15 de dezembro de 2013 | 02h07
É uma tentativa grosseira de gerar barulho por meio da indignação dos leitores (e, principalmente, leitoras). Na internet, deu-se a isso o nome de "trolada": defender um objetivo ridículo, em que nem você mesmo acredita, com a intenção de se tornar o centro das atenções. Acontece que a campanha gerou mais deboche do que raiva.
Apesar de insignificante, é triste ver uma campanha reforçar um discurso que já gerou tantas tragédias. A afirmação do poder dos homens sobre as mulheres é o que sustenta o machismo e várias formas de violência contra elas. Talvez você diga: "Ah, mas é só uma brincadeira...". Foi exatamente o que eu ouvi quando comecei minha cruzada contra o assédio sexual em locais públicos, cinco meses atrás. Em julho, lancei a campanha Chega de Fiu Fiu, pelo site Think Olga. A ação tem um objetivo: mostrar como assédio humilha e intimida as mulheres, e exterminar esse comportamento. A luta partiu de uma aflição pessoal. Sofro assédio nas ruas desde antes de menstruar. A primeira vez foi aos 11 anos, quando um cara, na rua da minha casa, me disse palavras que os editores deste jornal não me deixariam reproduzir.
Não é uma história exclusiva minha. Amigas e conhecidas também se lamentavam, em voz baixa, sobre o problema. A discrição tinha motivo: o medo de serem taxadas de exageradas, reclamonas e até, veja só, metidas. O assunto, como costumo dizer, era tratado como um monstro invisível, sem nenhum dado ou informação que pudessem descrevê-lo.
Em agosto, com a jornalista Karin Hueck, tentei entender contra o que brigávamos. Publicamos no site um questionário sobre assédio, elaborado por ela. Em apenas duas semanas, 7.762 mulheres brasileiras haviam respondido. Entre elas, 83% disseram não gostar do que são obrigadas a ouvir nas ruas; 81% já deixaram de fazer tarefas cotidianas por medo de assédio; 90% já trocaram de roupa para evitar cantadas; 85% delas já sofreram com a tal "mão boba".
Essas mulheres também compartilharam milhares de relatos terríveis. Iam de agressões verbais até contatos físicos - "um homem se masturbou ao meu lado", "um cara se aproximou me chamando de linda e encostou no meu rosto a mão molhada de sêmen", "quatro desconhecidos, ao cruzarem comigo na rua, tentaram rasgar minhas roupas".
Um dos obstáculos da campanha é a frequente confusão entre agressão e elogio, e ela foi até acusada de tentar acabar com o flerte. O fato de alguém não ser capaz de diferenciar assédio sexual de relações românticas naturais já mostra como o assunto é problemático.
A verdade é que não é nada difícil diferenciar um do outro. Elogio demonstra respeito, assédio constrange e humilha. Faça o teste: você repetiria o xaveco com sua chefe? Se suspeita que ela pode não gostar e até o demitir, por que fazê-lo com uma estranha na rua? Talvez seja só porque alguns homens sentem que, em locais públicos, têm poder para fazer o que quiserem com as mulheres. Também disseram que esse é apenas um traço da tão famosa cordialidade do brasileiro. Quando o historiador Sérgio Buarque de Holanda usou essa palavra para descrever nosso povo, ele quis dizer que as relações por aqui "vem do coração". Ou seja, as pessoas tendem a tratar quem está próximo como se fosse amigo ou membro da família, e a ignorar o que é público. O que as mulheres sofrem na rua é o oposto de ser cordial. É, na verdade, o pior traço cultural do País: ignorar o direito dos cidadãos comuns e não prezar uma vida pública de respeito e igualdade.
Mas o assédio sexual nas ruas não é um problema exclusivo do Brasil. É mundial. Não à toa, a ONU Mulheres lançou, em outubro, uma campanha contra ele. No fim do mês passado, Navi Pillay, alta comissária para os Direitos Humanos da ONU, alertou para a violência justificada pelas roupas que as mulheres usam. "Qualquer tipo de abuso contra mulheres é inaceitável, independentemente do que estiver vestindo", disse.
Em países em que a igualdade de gênero é mais equilibrada, como Alemanha, Noruega e Suécia, o assédio sexual nas ruas praticamente não existe. Ou seja, isso é uma prova de que as tais cantadas estão intrinsecamente ligadas a uma questão de poder, e não a carinho ou valorização. O cenário, no entanto, está mudando. Pode ser visto no crescimento de vários grupos de combate ao assédio e no engajamento de muitos homens na Chega de Fiu Fiu.
Ante tantas evidências de que o problema existe e é grave, percebi que há dois tipos de reação por parte dos homens. Alguns tentam entender melhor o que está acontecendo e querem conversar com as mulheres para criar uma relação saudável para ambos os gêneros. Outros apenas trazem novos exemplos do problema: soltam palavrões (fui chamada de frígida, mal comida e vagabunda, além de outros piores) e até tentam silenciar o movimento com violência, como no caso das ameaças de estupro que recebi. São pessoas que se revoltam em perder o privilégio e, de maneira raivosa, sentem saudade de quando podiam explorar e humilhar quem eles quisessem sem dor na consciência. É como se quisessem voltar no tempo. Mas, como todos sabemos, não existem máquinas do tempo. É inevitável que esses sejam atropelados pela história.
JULIANA DE FARIA É JORNALISTA, CRIADORA DO SITE THINKOLGA.COM, DA CAMPANHA CHEGA DE FIU FIU, CITADA EM OUTUBRO PELA ONU , MULHERES COMO UMA DAS INICIATIVAS CONTRA O ASSÉDIO EM LUGARES PÚBLICOS NO MUNDO
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