Método de tomar notas inspirou gerações de escritores e jornalistas

Ignácio de Loyola Brandão, Milton Hatoum e Ruy Castro são alguns dos adeptos da caderneta de anotações para escrever suas obras

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Por Matheus Lopes Quirino
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Repetido à exaustão durante gerações de escritores, o lema do norte-americano Ernest Hemingway (1899-1961), autor de O Velho e o Mar (1952) – “Quem quer ser um escritor deve ter uma caderneta de anotações, pois a memória não é suficiente” – se faz presente na vida e na literatura do romancista Ignácio de Loyola Brandão. Aos 82 anos, preparando o discurso de posse e pronto para envergar o fardão da Academia Brasileira de Letras, no dia 18 de outubro, tornando-se o titular da cadeira de número 11 – antes ocupada pelo sociólogo Hélio Jaguaribe (1933-2018) –, ele segue colecionando inúmeras cadernetas que somam miudezas pinçadas do cotidiano, ideias e elucubrações depois incorporadas à sua vasta produção. “Recorri inúmeras vezes às cadernetas para contar histórias, das quais tirei contos e crônicas”, disse o autor de O Homem que Odiava a Segunda-Feira, que completa 20 anos desde sua primeira publicação, ao Estado

O escritor Ignácio de Loyola Brandão Foto: Fábio Motta/Estadão

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Dono de um realismo feroz, como definiu o crítico Antonio Candido (1918-2017), o autor de obras primorosas, como a distopia Zero (1975) e Nada Sobrará Desta Terra a Não Ser o Vento que Sopra Sobre Ela (2018), Loyola Brandão é um aficionado pelos caderninhos, possuindo-os de todos os tipos, cores e tamanhos. Ele começou as anotações ainda no segundo ano do ginásio em Araraquara, no interior de São Paulo. A pedido da professora, o jovem Ignácio saiu pelo bairro para anotar o que acontecia pelo caminho e, a partir daquele exercício pueril, não parou mais. 

O também romancista Milton Hatoum, que lançou seu A Noite da Espera em 2017, prevê que o segundo volume da trilogia saia em meados de outubro deste ano. Escritor paciente confesso, ele mantém uma rotina regrada em sua escrita – regressou ao passado, redescobrindo o papel fundamental de reunir apontamentos em sua produção literária, “Faço anotações há muito tempo. Encontrei os cadernos do final da década de 1960, quando morei em Brasília. Algumas passagens do romance A Noite da Espera foram inspiradas nessas notas. Alguns trechos foram reescritos e inseridos no segundo volume (da trilogia O Lugar Mais Sombrio). As anotações antigas têm a vantagem de reavivar a memória, mas são transformadas pela imaginação”, disse o cronista do Caderno 2

Tomador de notas profissional, quase passou desapercebido pelos olhos atentos do biógrafo de Nelson Rodrigues, Ruy Castro, que o jogador Mané Garrincha (1933-1983) possuía origens indígenas, não fosse uma última consulta a um caderno miúdo de anotações. Anos depois, durante a curadoria do livro Carmen – Uma Biografia (2005), o feito se repetiu e novamente Castro se deparou com uma informação preciosa recolhida em tempo. “A informação do Garrincha, que me foi passada casualmente por sua irmã, dona Rosa, e a de que Carmen Miranda morara no bairro da Lapa, aqui no Rio, fundamentais para meus livros sobre eles, estavam anotadas em blocos sem que eu percebesse a importância delas. Só me dei conta depois quando folhei os blocos”, afirmou Castro.

O autor de Estrela Solitária – Um Brasileiro Chamado Garrincha (1995) admite não dar sossego aos livretes, levando consigo sempre uma caderneta e uma caneta Bic preta, para anotar onde quer que vá. Literal e literariamente, sua mania já lhe custou o sono, “Às vezes acordo de madrugada para tomar nota. Outro dia, fiz isto – meio dormindo, enchi uma página do bloco sem acender a luz. Na manhã seguinte, revirei o bloco e não encontrei as anotações. Eu tinha me esquecido de tirar a tampa da caneta”, completou o jornalista. 

O hábito, comum entre escritores, foi cultivado não só por Hemingway, dono do mote, que carregava consigo estes canhenhos – termo que segundo o dicionário etimológico do gramático Antônio Geraldo da Cunha (1924-1999) remete à primeira versão tida dos “caderninhos” no ano de 1524, em português lusitano. O romancista José Saramago (1922-2010) alimentava disciplinadamente os seus. Os diários do vencedor do Prêmio Nobel de Literatura renderam as edições dos Cadernos de Lanzarote, cinco diários escritos entre 1993 e 1998, ano de sua nomeação pela Academia Sueca.

Em 2018, a editora Companhia das Letras lançou O Último Caderno de Lanzarote (2018), que trouxe ao público anotações inéditas do autor de O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991). E foi em 7 de outubro de 1998, um dia antes da cerimônia de entrega do Nobel de Literatura, que o escritor – metódico na escrita dos diários – passou a anotar neste Último Caderno frases esparsas – começando por “Frankfurt. /Colóquio na feira de comunismo” –, ficando lacônico até dezembro daquele ano. 

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Saramago produzia duas laudas de literatura ao dia, com exceção de suas reflexões pessoais, “Saramago anotava os mínimos detalhes de um almoço ou uma entrevista em seus diários físicos, principalmente nos anos 1960. No Último Caderno, ele escrevia já no computador, tomava notas eletrônicas, pois era mais cômodo, este último diário foi achado por acaso pela Pilar Del Rio (viúva do escritor), que nos ligou eufórica”, contou o pesquisador da obra do autor e diretor de comunicação do Instituto José Saramago, Ricardo Viel. 

Ao contrário do que se possa pensar, o apelo das tecnologias não excluiu as novas gerações da tradição dos caderninhos. Um testemunho disso está no romance O Amor dos Homens Avulsos (2016), do escritor carioca Victor Heringer, morto precocemente em 2018, aos 29 anos. Em um trecho da obra, o narrador afirma: “Quando eu morrer, sei que alguém vai entrar aqui e enfiar tudo o que é meu numa caixa de papelão, que vai acabar numa caçamba dessas. Espero que alguém a encontre, porque dentro vão estar meus cadernos; minhas coisas têm alguma memória...” 

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