Michel Houellebecq analisa H.P. Lovecraft em ensaio inédito no Brasil

Autor mais polêmico da literatura francesa contemporânea faz carta de amor a Lovecraft no ensaio 'Contra o Mundo, Contra a Vida'

PUBLICIDADE

Por Rodrigo Petronio
5 min de leitura

A vida e a obra do escritor norte-americano Howard Phillips Lovecraft (1890-1937) podem ser definidas como um asteroide que tivesse atingido o começo século 20 sem ser percebido. Apenas há umas poucas décadas as ressonâncias desse desastre cósmico podem ser aferidas. Isso ocorre porque Lovecraft talvez tenha sido um dos autores mais marginalizados de toda literatura. 

Cena de 'A Cor que Caiu do Espaço', de Richard Stanley Foto: RLJE Films

Cita-se a plêiade dos poetas malditos. Venera-se os decadentistas do fim do século 19. Fala-se em Rimbaud, Lautréamont, Artaud, Pessoa, Kafka como exemplos de escritores “suicidados pela sociedade”. Mas esses autores, por mais alijados do sistema, acabaram se tornando canônicos e endeusados pela mainstream acadêmico. 

Com Lovecraft ocorre justamente o oposto. Dilapidou uma pequena herança. E, depois de um casamento fracassado de poucos anos, queimou seus dias em puro miserabilismo e isolamento. Como revisor de textos e jornalista amador, ganhava alguns trocados que mal garantiam a subsistência. Admirado pelos seus pares, ocupou um lugar estranho na cultura das revistas de pulp fiction, entre o horror, a ficção científica e a literatura especulativa. 

Depois de morto, transformou-se em um culto. Inaugurou um fenômeno inaudito na literatura: a ritualização. E reativou uma antiga modalidade de leitura: a leitura-reciclagem. Como em uma religião, os leitores-recicladores passaram a recriar seus personagens, mundos e narrativas. Incorporavam-nos. Reviviam suas sagas. Criavam outros desfechos, inaugurando o fenômeno contemporâneo das fanfics e da transmídia. Por outro lado, coube-lhe depois da morte o desprezo solene e silencioso das universidades. Amado pelos leitores. Desprezado pelos intelectuais. 

O leitor brasileiro agora tem a oportunidade de conhecer um pouco melhor esse universo a partir de diversas publicações. Dentre elas se destaca H. P. Lovecraft: Contra o Mundo, Contra a Vida, estudo sobre o mestre do horror assinado por Michel Houellebecq e com prefácio de Stephen King. Leitor de Lovecraft desde os 16 anos, esta é a primeira obra de Houellebecq, publicada em 1991 e traduzida pela primeira vez no Brasil. O ensaio vem acrescido de duas novelas de Lovecraft: O chamado de Cthulhu e O sussurro nas trevas. 

Para Houellebecq, Lovecraft pôs fim à literatura realista. E o fez por meio da extrapolação de alguns recursos: uma arquitetura de pluriversos, um materialismo negativo, uma religiosidade ateísta, a transcendência do Mal e a noção gnóstica de um Demiurgo maligno, criador do universo. Nessa mitologia pessoal, os personagens não são nem tipos sociais nem arquétipos do inconsciente coletivo. São entidades e forças cósmicas transumanas. Em oposição à banalidade dos conflitos cotidianos pequeno-burgueses, representada pelos realistas, Lovecraft teria reativado o antigo sentido das sagas e dos mitos fundadores em uma “gigantesca máquina de sonhos”. 

Continua após a publicidade

As entidades-matriz que perpassam toda sua ficção têm um nome: inteligências alienígenas. Contudo, diferente da ficção científica, que projeta essas inteligências em um futuro infinito, esse Grande Outro e esses seres extraterrestres estariam vinculados a um passado infinito. Seriam rastros e ressureições do Grande Antigo. Antigas divindades, forjadas nos interstícios da origem do universo, retornam para interrogar a insignificância humana. A encarnação perfeita dessa alteridade imemorial é Cthulhu, personagem-emblema que sintetiza toda cosmologia lovecraftiana. 

A partir dessa abordagem, Houellebecq identifica e analisa o que considera o âmago da obra de Lovecraft. Nomeia-o como os Grandes Textos: O Chamado de Cthulhu (1926), A cor vinda do espaço (1927), O horror de Dunwich (1928), O sussurro nas trevas (1930), Nas montanhas da loucura (1931), Os sonhos da Casa da Bruxa (1932), A sombra de Innsmouth (1932) e A sombra além do tempo (1934). Este ciclo de obras representaria o cume da maturidade criativa e existencial do autor. Mais do que isso: traria em si todas as variantes de sua ficção especulativa. A partir de uma topologia multidimensional, nessas obras Lovecraft teria edificado uma arquitetura de pluriversos habitados por uma multiplicidade de seres infinitamente maiores ou infinitamente menores do que o humano. Ou seja: infinitamente aterradores. 

Por fim, Houellebecq trata também de alguns temas polêmicos da vida do autor. Dentre eles o sua xenofobia e seu racismo. Em certo sentido isso se explica pela obra. Se o humano é um carrapato do cosmos e existem outras inteligências, meta-humanas e transfinitas, o humano pode muito bem ser capturado e domesticado por essas inteligências. Nesse sentido, por meio de extrapolação, o conceito de raça é reativado em termos ficcionais. Os humanos escravizaram outras etnias da mesma maneira que outras espécies de vida, ou seja, outras raças cósmicas podem vir a escravizar o humano. Mais do que um projeto protofascista deliberado, a questão do racismo em Lovecraft se assemelha mais a um medo diante do estranho. Um terror ancestral que assombra o sapiens quando adquire a plena consciência de seu fracasso. 

O ensaio de Houellebecq é um pouco veloz em algumas conclusões. E enfatiza demais certo arrivismo entre o escritor e o mundo. Também romantiza e idealiza alguns aspectos da vida e da obra desse mestre do horror cósmico. Essas limitações do livro podem esclarecer algumas consonâncias entre os dois autores. Polêmico, Houellebecq é o atual enfant terrible da literatura francesa. Em Partículas elementares (1998), mescla debates sobre o futuro da humanidade e pornografia. Em Plataforma (2001), trata de prostituição, fundamentalismo, globalização e inclui, em sua cartografia, o Brasil. Em A possibilidade de uma ilha (2005), o assunto é clonagem e a fabricação de pós-humanos. E Submissão (2015) se passa em uma Europa de 2022, dominada politicamente pelo islã. Dentre suas declarações, Houellebecq diz que a clonagem é mais humanista do que o aborto. 

Vencedor de prêmios importantes, parte da crítica o vê como uma revelação da literatura contemporânea. Outros o definem como um manipulador de clichês desgastados de manuais para a escrita de best-sellers. Os temas polêmicos? Fórmulas para vender. Não se trata de comparar Lovecraft e Houellebecq. Mas de compreendermos os monstros e as ideologias sinistras deste tempo em que vivemos. Para tanto, ao invés de nos mantermos em nossas bolhas banais de progressismo e de ressentimento, talvez o melhor seja esmiuçarmos a inteligência e a sensibilidade desses profetas da estranheza radical. Parafraseando o filósofo Peter Sloterdijk, o cientista experimenta com o mundo e o artista experimenta consigo mesmo. Toda grande arte é, sem exceção, experimental. E um dos experimentos mais fascinantes de nossa humanidade é conseguirmos olhar nos olhos de uma estranha criatura que pode vir a nos aniquilar. 

H.P. LOVECRAFT: CONTRA O MUNDO, CONTRA A VIDA Autor: Michel Houellebecq Tradução: Maria Luiza X. de A. Borges Editora: Nova Fronteira 200 páginas R$ 44,90

OS MITOS DE CTHULHU Autor: Howard Phillips Lovecraft Tradução: Regiane Winarski, Bruno Gambarotto e Alexandre Barbosa de Souza  Editora: Nova Fronteira 696 páginas R$ 179

Continua após a publicidade

TERRITÓRIO LOVECRAFT Autor: Matt Ruff Tradução: Thais Paiva Editora: Intrínseca 352 páginas  R$ 59,90

OS MITOS DE CTHULHU (HQ) Autor: Esteban Maroto Tradução: Denise Schittine Editora: Pipoca & Nanquim 92 páginas R$ 39,90

A BALADA DO BLACK TOM Autor: Victor Lavalle Tradução: Petê Rissatti Editora: Morro Branco 160 páginas R$ 39,90

A FLORESTA DAS ÁRVORES RETORCIDAS Autor: Alexandre Callari Editora: Pipoca & Nanquim 420 páginas R$ 69,90

*Rodrigo Petronio é escritor e filósofo. Professor titular da FAAP e pesquisador do Centro de Tecnologias da Inteligência e Design Digital (TIDD|PUC-SP).

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.