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Mihail Sebastian, autor esquecido da vanguarda romena, é redescoberto no Brasil

Escritor propõe revolução dionisíaca em 'Fragmentos de um Caderno Achado', obra de 1932 que chega agora ao País

Por Luis S. Krausz
Atualização:

No conhecido ensaio Paris, a Capital do Século XIX, de Walter Benjamin, as passagens, precursoras das lojas de departamentos, surgem como emblemas do capitalismo industrial. Para o filósofo, as engrenagens invisíveis de sua arquitetura fazem circular massas de gente, como a maquinaria das fábricas o faz com as mercadorias. O ritmo da metrópole, governado por tais mecanismos, gera a multiplicação do capital, que atrela, a seu próprio serviço, as forças humanas – físicas e psíquicas –; as da natureza e até as forças sagradas, agrilhoadas pelo “catecismo da perseverança industrial” de que fala Roberto Piva. 

Romance de Mihail Sebastian se passa em Paris, mas a Bucareste de sua Romênia passava pelos mesmos fenômenos de urbanização Foto: Domínio público

Na cidade moderna, um acúmulo de choques incessante se impõe, instaurando em seus habitantes as couraças da insensibilidade e do anestesiamento. A figura perceptiva do flâneur, estranha a semelhante lógica, contrapõe-se à massa amorfa dos passantes, à multidão sempre ocupada e apressada, como alguém que “ainda se encontra no limiar, da cidade grande tanto quanto da classe burguesa: nenhuma das duas ainda o subjugou.” Sua experiência é constituída de fragmentos desconexos, pois a fragmentação da experiência é fundamental à modernidade metropolitana, com a diferença de que ele busca valorizar esses fragmentos, numa espécie de arqueologia dos sentidos perdidos. Le printemps adorable a perdù son odeur, escreve, resignado, Baudelaire, o poeta da fragmentação da existência na metrópole. É em busca desse odor perdido que parte o flâneur.  É em torno de uma figura assim, isto é, de alguém que se entrega aos labirintos da circulação urbana em busca de algo tão perdido quanto indefinível, que se constitui a narrativa de Fragmentos de um Diário Achado, obra de 1932, ambientada em Paris, do escritor romeno Mikhail Sebastian (1907-1945), emoldurada por uma mise en abîme – um breve prólogo em que o narrador afirma tratar-se de excertos de um “caderno de capa preta, lustrosa, de lona, igual àqueles que costumam ser usados, nas mercearias, como livro-caixa”, que ele teria encontrado na ponte Mirabeau. 

O escritor romeno Mihail Sebastian Foto: Hedra

O que se segue são passagens de um diário, cujo autor anônimo encarna, de maneira exemplar, o olhar do errante sobre a cidade e seus habitantes: percorre os bairros parisienses e, em desprezo pelas convenções, busca uma grandeza e uma suposta genialidade perdidas. Afirma desprezar a moralidade e estar em busca da santidade, isto é, de uma epifania, no sentido nietzschiano do termo, experimentando a “vida nua”, metaforizada pela imagem do marinheiro que segue à deriva pelo rio da existência. O texto, assim, é de um dionisíaco para quem, “entre um arbusto que cresce selvagem e um jardineiro com tesouras e ideias, minha simpatia de animal vai para o arbusto, por inteiro.” “Não quero prevenir coisa nenhuma e não quero corrigir nada,” escreve ele, igualmente. Ou: “o vento que sopra, eu lhe ofereço meu rosto. Que me penetre como se eu fosse uma árvore na estepe, que me açoite à vontade e cesse quando bem entender!”  Nada revolta este autor mais do que o pensamento cartesiano, o sonho da razão que acaba por produzir monstros: “odeio esse tal de Descartes, pois ele (...) jamais teve, não, jamais pôde ter o calafrio de pressentir a santidade. Era um jardineiro.” A santidade de que se fala aqui nada tem a ver com aquela proposta pela metafísica cristã ou pela moralidade burguesa: é a concebida pelo shivaísmo e pelo dionisismo, que busca a instauração do novo, numa espécie de sensualismo da contracultura avant la lettre, que almeja a intensidade e a efemeridade da existência livre. O destino do caderno, apenas casualmente encontrado pelo narrador, que se apresenta como uma espécie de “catador de trapos”, representa, implicitamente, o malogro dessa odisseia anônima e sua derrota ante o caráter implacável da maquinaria do mundo. Mas é justamente em sua renúncia a qualquer tipo de transcendência, de futuro, de heroísmo ou de projeto, que se encontra o cerne das intenções do autor do diário: o desmembramento e o despedaçamento são aspectos intrínsecos e inseparáveis do dionisismo, assim como a aceitação da transitoriedade e a aversão a tudo o almeja à perenidade.  O livro torna-se, assim, um grito pela vida em si mesma, afinado com o caráter rebelde das vanguardas artísticas europeias das décadas de 1920 e 1930, que influenciaram Sebastian tanto quanto outros literatos romenos de seu tempo, tais como Cioran, Ionesco e Eliade, ao lado dos quais ele participou do movimento estético “Criterion”. Este, porém, não tardou a sofrer a influência da filosofia de Ionesco, uma mistura de nacionalismo, existencialismo e misticismo cristão, assim como da Guarda de Ferro, organização paramilitar fascista e ferrenhamente antissemita. Como era judeu, Sebastian passou a ser excluído e execrado. A publicação destes Fragmentos, assim, traz de volta à atenção do público um autor importante no cenário literário romeno, injustamente excluído da posteridade tanto quanto o elusivo protagonista dessa narrativa. * Luis S. Krausz é Professor Livre Docente de Literatura Hebraica e Judaica da USP, romancista e tradutor.

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