No conhecido ensaio Paris, a Capital do Século XIX, de Walter Benjamin, as passagens, precursoras das lojas de departamentos, surgem como emblemas do capitalismo industrial. Para o filósofo, as engrenagens invisíveis de sua arquitetura fazem circular massas de gente, como a maquinaria das fábricas o faz com as mercadorias. O ritmo da metrópole, governado por tais mecanismos, gera a multiplicação do capital, que atrela, a seu próprio serviço, as forças humanas – físicas e psíquicas –; as da natureza e até as forças sagradas, agrilhoadas pelo “catecismo da perseverança industrial” de que fala Roberto Piva.
Na cidade moderna, um acúmulo de choques incessante se impõe, instaurando em seus habitantes as couraças da insensibilidade e do anestesiamento. A figura perceptiva do flâneur, estranha a semelhante lógica, contrapõe-se à massa amorfa dos passantes, à multidão sempre ocupada e apressada, como alguém que “ainda se encontra no limiar, da cidade grande tanto quanto da classe burguesa: nenhuma das duas ainda o subjugou.” Sua experiência é constituída de fragmentos desconexos, pois a fragmentação da experiência é fundamental à modernidade metropolitana, com a diferença de que ele busca valorizar esses fragmentos, numa espécie de arqueologia dos sentidos perdidos. Le printemps adorable a perdù son odeur, escreve, resignado, Baudelaire, o poeta da fragmentação da existência na metrópole. É em busca desse odor perdido que parte o flâneur. É em torno de uma figura assim, isto é, de alguém que se entrega aos labirintos da circulação urbana em busca de algo tão perdido quanto indefinível, que se constitui a narrativa de Fragmentos de um Diário Achado, obra de 1932, ambientada em Paris, do escritor romeno Mikhail Sebastian (1907-1945), emoldurada por uma mise en abîme – um breve prólogo em que o narrador afirma tratar-se de excertos de um “caderno de capa preta, lustrosa, de lona, igual àqueles que costumam ser usados, nas mercearias, como livro-caixa”, que ele teria encontrado na ponte Mirabeau.
O que se segue são passagens de um diário, cujo autor anônimo encarna, de maneira exemplar, o olhar do errante sobre a cidade e seus habitantes: percorre os bairros parisienses e, em desprezo pelas convenções, busca uma grandeza e uma suposta genialidade perdidas. Afirma desprezar a moralidade e estar em busca da santidade, isto é, de uma epifania, no sentido nietzschiano do termo, experimentando a “vida nua”, metaforizada pela imagem do marinheiro que segue à deriva pelo rio da existência. O texto, assim, é de um dionisíaco para quem, “entre um arbusto que cresce selvagem e um jardineiro com tesouras e ideias, minha simpatia de animal vai para o arbusto, por inteiro.” “Não quero prevenir coisa nenhuma e não quero corrigir nada,” escreve ele, igualmente. Ou: “o vento que sopra, eu lhe ofereço meu rosto. Que me penetre como se eu fosse uma árvore na estepe, que me açoite à vontade e cesse quando bem entender!” Nada revolta este autor mais do que o pensamento cartesiano, o sonho da razão que acaba por produzir monstros: “odeio esse tal de Descartes, pois ele (...) jamais teve, não, jamais pôde ter o calafrio de pressentir a santidade. Era um jardineiro.” A santidade de que se fala aqui nada tem a ver com aquela proposta pela metafísica cristã ou pela moralidade burguesa: é a concebida pelo shivaísmo e pelo dionisismo, que busca a instauração do novo, numa espécie de sensualismo da contracultura avant la lettre, que almeja a intensidade e a efemeridade da existência livre. O destino do caderno, apenas casualmente encontrado pelo narrador, que se apresenta como uma espécie de “catador de trapos”, representa, implicitamente, o malogro dessa odisseia anônima e sua derrota ante o caráter implacável da maquinaria do mundo. Mas é justamente em sua renúncia a qualquer tipo de transcendência, de futuro, de heroísmo ou de projeto, que se encontra o cerne das intenções do autor do diário: o desmembramento e o despedaçamento são aspectos intrínsecos e inseparáveis do dionisismo, assim como a aceitação da transitoriedade e a aversão a tudo o almeja à perenidade. O livro torna-se, assim, um grito pela vida em si mesma, afinado com o caráter rebelde das vanguardas artísticas europeias das décadas de 1920 e 1930, que influenciaram Sebastian tanto quanto outros literatos romenos de seu tempo, tais como Cioran, Ionesco e Eliade, ao lado dos quais ele participou do movimento estético “Criterion”. Este, porém, não tardou a sofrer a influência da filosofia de Ionesco, uma mistura de nacionalismo, existencialismo e misticismo cristão, assim como da Guarda de Ferro, organização paramilitar fascista e ferrenhamente antissemita. Como era judeu, Sebastian passou a ser excluído e execrado. A publicação destes Fragmentos, assim, traz de volta à atenção do público um autor importante no cenário literário romeno, injustamente excluído da posteridade tanto quanto o elusivo protagonista dessa narrativa. * Luis S. Krausz é Professor Livre Docente de Literatura Hebraica e Judaica da USP, romancista e tradutor.