Milan Kundera elenca interpretações abusivas das obras de autores

Kafka, Hemingway e até Stravinski figuram em ensaios presentes no livro 'Os Testamentos Traídos'

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Por Paulo Nogueira
Atualização:
O escritor checo Milan Kundera, autor de 'Os Testamentos Traídos' 

Ao lermos Os Testamentos Traídos, conjunto de nove ensaios (agora em bela edição em capa dura), é inevitável refletir que a própria ficção de Milan Kundera tem uma pegada ensaística. Como entrega o título do seu mais famoso romance: A Insustentável Leveza do Ser, que começa assim: “O eterno retorno é uma ideia misteriosa de Nietzsche que, com ela, conseguiu dificultar a vida de não poucos filósofos.” Também no formato criado por Montaigne, o escritor checo assinou um dos melhores compêndios sobre seu ofício: A Arte da Romance. Com um pé nas duas canoas da ficção e da não ficção, Kundera tira de letra o epigrama de Bernard Shaw: “Quem sabe faz, quem não sabe ensina.” 

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Hoje com 88 anos, em 1968 Kundera defendeu a Primavera de Praga e levou um passa-fora do Partido Comunista da então Checoslováquia, do qual era militante de carteirinha. Cinco anos depois, se mandou de mala e cuia para Paris, obtendo a cidadania francesa. Figurinha fácil nas listas para o Nobel de literatura, bateu sempre na trave. 

Os testamentos traídos do título são interpretações abusivas de artistas e suas obras. Como a rejeição pelo maestro suíço Ernest Ansermet da música do seu ex-cupincha Igor Stravinski. Como na ficção de Kundera, também aqui a estrutura é mais espiralada que retilínea. Em A Insustentável Leveza do Ser, ele repetia certos fatos sob diferentes pontos de vista. Nestes ensaios, disseca os mesmos temas sob múltiplos ângulos, unidos por um suspiro irônico: “Ah, é tão fácil desobedecer um morto.”

O ensaísta inveja a inocência criativa dos primeiros ficcionistas – Cervantes, Rabelais e Fielding: “O romancista de hoje, herdeiro do século 19, experimenta uma nostalgia desse universo e da alegre liberdade que o habitava.” Isto é: sem uma árvore genealógica ou um cânone, não os oprimia nem a angústia da influência nem qualquer código dogmático, seja a reverenciar, seja a demolir.

Para Kundera, o xis da arte romanesca reside na ambiguidade, que não é redutível a uma generalização (prerrogativa da ciência, não do personagem idiossincrático). Uma das consequências sísmicas do romance é o advento do humor moderno: “Como notou Octavio Paz, nem Homero nem Virgílio conheceram o humor, que só toma forma com Cervantes, e é a grande criação do espírito contemporâneo. O humor não é uma prática imemorial do homem; é uma invenção ligada ao nascimento do romance, que torna ambíguo tudo o que atinge.” Por isso mesmo, o melhor protagonista é sempre uma minoria de um, nunca um arquétipo e muito menos um estereótipo. 

Daí, também, que o bom ficcionista jamais é moralizador, ao contrário do panfletário, cujos slogans missionários se reduzem ao kitsch sentimental: “Este mundo não é apenas um Gulag, é um Gulag com versinhos edificantes nos muros.” O melhor antídoto é sempre o melhor humor, que “descobre o homem em sua profunda incompetência para julgar os outros, e é uma embriaguez da relatividade das coisas humanas, um estranho prazer nascido da certeza de que não há certeza.”

E tomem exemplos conclusivos para deixarmos de ser bestas. Como Kafka e seu BFF, Max Brod. Sem este último, nunca teríamos visto Kafka mais gordo. Brod não apenas se recusou a destruir os manuscritos do autor de O Processo, como editou e foi o seu paladino. Kundera concede que Brod era um cara legal e um intelectual brilhante. Desgraçadamente, porém, não entendia bulhufas de arte moderna – por isso, a novidade narrativa de Kafka lhe passou batida. Em contrapartida, Brod criou a “kafkologia”: a imagem Kafka como um padroeiro da sofrência. Como Kundera questiona: “Mas santos podem frequentar bordéis?” Brod censurou do diário do amigo todas as alusões à prostitutas e à sexualidade. Não, Kafka não era kafkiano, mas algo muito melhor: um contador de histórias prodigiosamente singular e inovador. 

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Outras traições são as de Salman Rushdie por parte de certa intelligentsia, no episódio da Fatwa lançada por Khomeini por causa de Os Versos Satânicos, e de Hemingway por um biógrafo. No primeiro caso, inúmeros intelectuais (John Lé Carré, Roald Dahl etc) professaram amor à liberdade de expressão, mas reprovaram o “ataque a uma fé”. Só que – ops! – não havia ataque nenhum. Ao não lerem e não gostarem, os críticos de Rushdie escamotearam o óbvio: que “não há lugar para o ódio no universo da relatividade romanesca: o romancista que escreve para ajustar contas (pessoais ou ideológicas) está destinado ao naufrágio estético.” 

No momento mais divertido do livro, Kundera espinafra a biografia de Hemingway por Jeffrey Meyers (também biógrafo de Fitzgerald). Como no caso de Kafka, o parâmetro estético foi para o espaço, em favor de explicações moralistas e questiúnculas mundanas. O ensaísta chuta o balde: “Esses parasitas não sabem nada sobre a vida sexual de seus próprios cônjuges, mas acham que sabem tudo sobre a intimidade de Stendhal ou Faulkner.” 

Em que pé ficamos? Para ser um bom autor, é preciso ser um ótimo leitor. Um truísmo que soa revolucionário, numa época em que tantos escritores escreveram mais livros do que leram. 

*Paulo Nogueira é autor de 'O Amor é um Lugar Comum' (Editora Intermeios) 

Capa do livro 'Os Testamentos Traídos', de Milan Kundera 

Os Testamentos Traídos Autor: Milan KunderaTradução: Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca e Maria Luiza NewlandsEditora: Companhia das Letras 296 páginas R$ 54,90

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