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Milhões de pessoas. Um passo

Laura Restrepo, escritora colombiana, colunista do jornal espanhol ?El País?. Contra ?o sofrimento silencioso?, a Colômbia de Restrepo transformou-se num mar de gente

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Laura Restrepo é uma autora pouco conhecida no Brasil, embora sua projeção transcenda as fronteiras colombianas e mesmo da América Latina (é colunista do jornal espanhol El País). De seus oito romances, apenas dois foram traduzidos para o português: A noiva escura (Companhia das Letras) e Doce Companhia (Record). O primeiro valeu elogios de Gabriel García Marquez e Isabel Allende. Não foi à toa que a Laura abandonou sua vida de jornalista, indo desta para uma melhor. Em Bogotá, onde Laura Restrepo nasceu há 58 anos, sua fama transcende a de uma escritora. Laura foi - não é mais - um importante quadro da militância de esquerda naquele país. Tanto que, nos anos 80, foi nomeada pelo ex-presidente Belisario Betancur (1982 a 1986) "negociadora de paz" no processo que fez do grupo guerrilheiro M-19 um partido político. Na ocasião, ela conta, considerou-se também a negociação com as Farc, as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia. "Falei diversas vezes com os líderes da guerrilha", lembra. "E estive em muitos de seus acampamentos." Na segunda-feira passada, quando milhões de colombianos saíram para protestar contra as Farc, Laura vestiu sua camiseta branca e providenciou para a mãe uma cadeira de rodas. Foram juntas. No depoimento a seguir, ela relata a experiência de "sentir que havia um elo comum, um sentimento único na grande massa que tomara as ruas". * "Sinto hoje uma enorme alegria. Uma alegria que vem do fato de o povo colombiano finalmente ter conseguido rechaçar o sofrimento silencioso que parecia mantê-lo passivo, apesar de tantas mortes, de tanto sangue que corre neste país. A manifestação de segunda-feira foi uma expressão de vida, um protesto multitudinário. Eram rios e rios de gente. Não se podia caminhar pelas ruas de Bogotá, e assim foi em todas as cidades da Colômbia. "As Farc, apesar de serem uma organização política de origem nobre - em resposta aos tempos da Violência (conflito civil ocorrido no país entre 1948 e 1958), forjaram-se como uma forma de autodefesa dos camponeses -, sofreram depois um terrível processo de degeneração. São como um anão político com uma enorme cabeça militar e financeira, mantida pelo narcotráfico e pelo seqüestro. São enormemente impopulares entre os colombianos. Houve um tempo em que seqüestravam apenas os ricos. De dez anos para cá, seqüestram qualquer um. Se é rico, lhe cobram muito; se é pobre, lhe cobram pouco. Isso faz com que as pessoas realmente as odeiem. "Passada a grande manifestação, meu sentimento é de alegria, mas está carregado, também, de algo contraditório. Porque as Farc, obviamente, não são o único fator de violência e guerra no país. Dois terços das pessoas seqüestradas na Colômbia não estão nas mãos da guerrilha, mas dos paramilitares. E estes têm ligações muito íntimas com o Estado, como demonstram os mais de 40 funcionários públicos acusados de narcoparamilitarismo. A manifestação não abordou esse lado da violência. Nesse sentido, permanece o silêncio. "Por isso, a esquerda aqui está dividida. Houve aqueles que não saíram às ruas porque a manifestação serviria aos interesses do presidente Álvaro Uribe, apontado pelos críticos de seu governo (eu incluída) como alguém que tem laços com o paramilitarismo. Mas eles se equivocaram, porque o direito à vida e à liberdade é o mais elementar e primário dos direitos democráticos. A manifestação foi a expressão lícita de um sentimento de dor e solidariedade. E o sentimento coletivo de senhoras e crianças nas ruas tem um profundo conteúdo político. "As cartas de reféns das Farc, lidas recentemente, sacudiram a consciência nacional. Como milhares de colombianos, fiquei chorando diante da TV. Homens, mulheres, civis, militares cadavéricos, à beira da morte, amarrados às árvores. As correntes têm um valor simbólico muito forte, remetem à escravidão. Ver compatriotas com correntes no pescoço foi mais do que nós, colombianos, podíamos suportar. "Este é um país que esteve mergulhado na violência durante toda sua vida republicana, e por isso existe uma certa incapacidade de reagir a ela. A dor do povo colombiano é tão grande que se tornou endêmica. Diante da televisão, o pranto coletivo dizia: "Nós estamos com vocês". O nosso choro era de indignação, mas também de culpa coletiva por termos permanecido não apáticos, mas derrotados. Era um choro que escondia outra faceta: "Nós os deixamos sozinhos". Um dos seqüestrados, inclusive, citou uma frase de Martin Luther King: "Não me dói tanto a maldade dos maus quanto a indiferença dos bons". Isso tocou os corações de todos e motivou em grande medida a mobilização que se viu. "Essa mobilização, e isso é espantoso, surgiu de forma quase espontânea. Aos partidos políticos faltou a percepção do que ocorria no país. Foram os garotos que começaram a convocar uns aos outros pela internet. Esse tipo de coisa pega. Transforma-se num rumor que começa nos bairros e se dissemina nos locais de trabalho. Nas últimas semanas, a guerra que se manifesta aqui, nos campos e nas cidades, manifestou-se também na internet. De um lado, pessoas indignadas convocavam outras a tomarem as ruas. Ao mesmo tempo, havia uma campanha feroz de ameaças a Carlos Gaviria, ex-magistrado da Corte, um democrata integral que lidera o partido de oposição, o Pólo Democrático. Em mensagens diversas, ameaçavam cortar-lhe um pedaço com um machete - a fórmula de punição clássica dos paramilitares. "Na segunda-feira, o dia da manifestação, minha mãe queria sair de qualquer jeito. É uma senhora em idade avançada, com sérias dificuldades para se locomover. Eu e minha irmã conseguimos então uma cadeira de rodas. Estávamos todos vestidos de branco - o país inteiro vestia branco. E mamãe pôs uma camiseta na qual se lia: ?Contra todos os grupos violentos?. Ela, muito lúcida, queria indicar que não era apenas contra as Farc, mas contra todos os grupos violentos do país. Fiquei um pouco ali com ela, e depois fui à Praça Bolívar, onde a esquerda convocara uma manifestação. Mas, na verdade, a esquerda foi ofuscada pela multidão, que nesse momento não era de esquerda nem de direita, não era pró-Uribe nem anti-Uribe - era tão somente uma multidão solidária. "Depois fui para a Igreja do Voto Nacional, onde estavam reunidos os parentes dos seqüestrados. Sempre me encanta o termo "santuário", no sentido histórico de lugar onde a vítima está protegida da perseguição. Pareceu-me simbólico que os parentes estivessem num santuário. Ao redor, havia uma grande manifestação de pessoas que gritavam slogans pedindo um acordo humanitário. "Em janeiro, o presidente Chávez conseguiu negociar com as Farc e obter a libertação de duas seqüestradas. Vê-las tão inteiras, valentes, bonitas, foi também a prova de que era possível, sim, negociar a libertação dos reféns. Vê-las livres foi como voltar a enxergar a força dos colombianos, em particular das mulheres - ninguém diria que Clara Rojas e Consuelo González estavam havia seis anos enterradas em condições tão desumanas. "O assombroso e absolutamente triste é que Chávez perdeu a lucidez no momento seguinte. A um povo como o colombiano, que detesta as Farc, não se podia dizer que elas eram um exército bolivariano. Na Colômbia, no Peru, nos países libertados por Bolívar, ele continua sendo um símbolo de liberdade. "A manifestação de segunda-feira reorganizou nossas forças. Obviamente, não tínhamos motivos para uma celebração. Mas havia no ar um entusiasmo enorme desde as 6 da manhã. Embora as pessoas ainda não estivessem nas ruas, já se sentia o que estava prestes a acontecer. O meu filho saindo muito cedo para passear com os cães, os amigos todos telefonando, as camisetas brancas. Havia uma sensação maravilhosa de que lá fora, na rua, veríamos milhões e milhões de pessoas dando um primeiro passo no caminho da paz. "Na Rua 7, quando já não se podia caminhar, tal era o mar de gente, eu senti a proximidade de uma multidão assustadora. Por causa das nossas camisetas, que não faziam referência direta às Farc, tínhamos um pouco de medo de que pudéssemos ser agredidos. Mas o mar de gente era tão grande que mal se podia ler o que estava nas camisetas. Havíamos todos nos transformado numa grande massa, e talvez esse tenha sido o momento mais emocionante daquele dia - sentir que havia um elo comum, um sentimento único na grande massa que tomara todas as ruas: a solidariedade com os seqüestrados e o clamor por sua liberdade. "Meu filho tem 27 anos. Cresceu num país onde não se conhece a paz. Mas te digo uma coisa: nós, mais velhos, também não conhecemos a paz. Nasci em 1950, durante a Violência. Os anos foram passando, passando, sempre com a expectativa de paz, e se não era esta violência, era outra violência, e se não era esta outra, era a violência das Farc, a violência paramilitar, a violência do tráfico. Nunca saímos disso. Quando meu filho era pequeno, cuidava para que sempre viajássemos ao exterior - eu tinha medo de que ele se acostumasse com essa vida sempre permeada pela morte. "A Colômbia, como o Brasil, tem maneiras particulares de se sobrepor a essa triste situação. Uma delas é o humor. Há sempre a possibilidade de rir-se das dificuldades. Há sempre um humor muito mordaz, muito duro. Os estrangeiros ficam atônitos diante do volume de piadas colombianas. É nossa ferramenta moral para enfrentar a tragédia. Países como o seu, como o meu, têm uma forma de lucidez que talvez seja nosso maior patrimônio e nossa vantagem sobre outros que vivem situações mais tranqüilas. "Como mulher, foi muito especial para mim ver Clara e Consuelo tão aprumadas. Tenho a convicção de que as mulheres colombianas têm uma força extraordinária. A guerra não produziu somente sentimentos de derrota. Produziu também monumentos, gente muito forte, muito resistente. Em boa medida, aqui as mulheres conseguiram criar espaços de paz, para que os filhos crescessem, para que o trabalho fosse possível, para que enfim a sociedade se mantivesse viva. "Os acontecimentos na América Latina, e particularmente na Colômbia, não são isolados, como se pretende ver. Somos apenas o cenário onde explode com maior virulência uma situação que ocorre em âmbito mundial. Refiro-me a esse capitalismo arrasador, que desconhece os fracos, que desconhece os pobres, que põe o centro da felicidade e dos objetivos nos negócios. Isso se manifesta na Colômbia de uma maneira muito brutal. Que imagem pode melhor simbolizar esse modelo que o narcoparamilitar colombiano? É um senhor para quem o dinheiro vale mais que a vida de seus próprios familiares, porque eles também tem uma existência miserável, justamente por causa de toda essa violência. "Na segunda-feira passada, uma associação de parentes das vítimas seqüestradas fez uma nova convocação: no dia 6 de março, as pessoas devem sair de novo às ruas para se manifestarem contra os crimes do Estado e dos paramilitares. E, claro, pela libertação dos reféns em poder desses paramilitares. Penso que esta seja a parte que nos falta. Suponho que haverá muito medo de participar desse ato e que a campanha oficial contra ele será enorme. Mas, da minha parte, esteja certo de que estarei lá." SEGUNDA, 4 DE FEVEREIRO Nas ruas, pela liberdade Milhões de manifestantes ocuparam as ruas de 40 cidades colombianas e de outras 125 cidades no restante do mundo para protestar contra as Farc. Vestidos de branco, os manifestantes pediam a libertação dos 700 reféns em poder da guerrilha. CIDADANIA "Minha mãe, uma senhora de idade, foi às ruas numa cadeira de rodas" ALÉM DAS FARC "Dois terços dos seqüestrados não estão nas mãos da guerrilha, mas dos paramilitares"

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