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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|Mim, Tarzan. Você, robô

A progressão é geométrica: 47% dos postos detrabalho já estão automatizados e, daqui a dois anos,31 milhões de empregadas virtuais, como a Anitada série Humans, cuidarão da casa, das crianças e dos idosos. Cientistas afirmam que as inteligências artificiais vão cooperar com a gente. Mas não custa ensinar a elas o bê-á-bá das boas maneiras – e quem é que manda

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Atualização:

Já vivemos cercados por eles. Até mesmo em lugares e funções inimagináveis – das salas de cirurgia a asilos para idosos –, surpreendentes sobretudo para quem desconhece a diferença entre um robô e um bot e confunde ciborgues com androides e replicantes com autômatos. Relaxem. Estamos cercados e relativamente condicionados por bots e robôs, mas não dominados por eles. Ainda.

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(Para saber o que é um bot, consulte o Google. Ou tecle 1:

Bot: diminutivo de robot, também conhecido como internet bot ou web robot, é um programa de computador concebido para simular ações humanas repetidas vezes de maneira padrão, da mesma forma como faria um robô. Aquela vozinha chata que invade seu celular, seu telefone fixo e sua secretária eletrônica para lhe empurrar um produto que você não está interessado em adquirir, por exemplo, é um bot.)

  Foto: Zansky

Robôs dispensam apresentações, assim como os símiles cibernéticos que igualmente nos foram apresentados pelo cinema e pela literatura de ficção científica: de Maria (a mecânica criatura do filme Metrópolis, aliás só seis anos mais nova que a palavra robô, cunhada pelo escritor checo Karel Capek) a Anita (a servil governanta de Humans, série de TV anglo-americana exibida ano passado pelo canal a cabo AMC e a caminho de uma segunda temporada). Entre as duas femininas extremidades, uma prole predominantemente viril: Robby (o fraternal robô de O Planeta Proibido), Gort (o fiel guarda-costas e curandeiro do extraterrestre de O Dia em que a Terra Parou), Hal 9000, R2-D2, C-3PO, para ficarmos só na primeira divisão.

O sucesso internacional de Humans, primeiro na versão original sueca, deu novo impulso ao interesse popular por robôs e sua complexa relação com os humanos. Tecnicamente definida como uma “synth” (de sintética), Anita, a protagonista da série, é uma graciosa Maria von Trapp eletrônica cuja presença revoluciona o cotidiano de uma família de classe média londrina. A patroa se ausenta por uns tempos e, ao voltar para o convívio do marido e das filhas, se sente mais deslocada e rejeitada que a baronesa de A Noviça Rebelde.

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A série tenta explorar o impacto social, cultural e psicológico da invenção de robôs antropomórficos e sua inserção em nossas vidas. Anita é um robô do bem. Segue a linhagem dos serviçais confiáveis da ficção científica dos anos 1920, ancestrais dos simpáticos R2-D2 e C-3PO de Guerra nas Estrelas. E que nas décadas seguintes escassearam um pouco, alternando com lacaios de variável malignidade, em geral vindos do espaço, e comparsas boas-praças fabricados aqui mesmo na Terra, o corpo metálico, o coração de manteiga.

A fantaciência já nos abasteceu de robôs com instintos maternais (ou paternais), capazes de chorar, de até virar papa (Good News from the Vatican, escrito por Robert Silverberg em 1971) e mesmo repensar o tomismo (The Quest for Saint Aquin, conto de Anthony Boucher, publicado em 1951). Gort, o robô de O Dia em que a Terra Parou, vinha de um planeta distante, acompanhando um ET humanoide chamado Klaatu, a quem obedecia cegamente. Nem do bem nem do mal, apenas ameaçador, fora programado para baixar a guarda ao ouvir três palavras mágicas: “Klaatu barada nikto”. Ouviu-as da boca de Helen Benson (Patricia Neal), e nosso planeta ganhou uma sobrevida. E a robofilia, um poderoso aliado.

Clássico de seu gênero cinematográfico, o filme de Robert Wise, produzido em 1951 e refilmado quase 60 anos mais tarde (em cores, mas sem o charme original), era uma alegoria das paranoias político-ideológicas e dos sentimentos xenofóbicos incentivados pela Guerra Fria. Nele, os terráqueos saíam mais como vilões do que vítimas. Klaatu trazia uma mensagem de paz e uma sábia advertência antibelicista, que as grandes potências recebiam a bala, pondo em risco a sobrevivência do planeta, afinal salvo pela magnanimidade de Klaatu.

Já os vilões de Eu, Robô, por exemplo, eram daqui mesmo. A bem dizer, uma vilã (V.I.K.I.), a comandar um exército de convertidos às suas ambições ditatoriais, que um detetive de carne, osso e orelhinhas de abano (Will Smith) peleja para capturar e desprogramar. V.I.K.I. era o que em biônica rotulam de I.A. (Inteligência Artificial), sem, contudo, a sensaboria do androide Gigolo Joe, encarnado por Jude Law naquele meloso filme de Steven Spielberg. Sua inspiração foi a obra homônima em que Isaac Asimov esboçou as regras mínimas para uma interação harmoniosa entre robôs inteligentes e seres humanos, as tais Leis da Robótica.

Primeira Lei: Um robô não pode ferir um ser humano ou, por inação, permitir que um ser humano sofra algum mal. Segunda Lei: Um robô deve obedecer às ordens que lhe sejam dadas por seres humanos exceto nos casos em que tais ordens entrem em conflito com a Primeira Lei. Terceira Lei: Um robô deve proteger sua própria existência desde que tal proteção não entre em conflito com as duas primeiras leis.

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Mais diretivas que leis, nenhuma delas, que eu saiba, pôde ser testada no mundo real. Ano passado, um jovem mecânico foi morto por um robô numa fábrica da Volkswagen, perto de Kassel, na Alemanha. Marcou bobeira, entrou na área restrita aos operários movidos a software, levou um chambão no peito e acabou esmagado contra uma placa de metal. Puro acidente de trabalho.

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Por via das dúvidas, não custa nada ensinar boas maneiras àquela armadura de circuitos integrados. Numa conferência em Phoenix (Arizona), na primeira semana deste mês, uma dupla de pesquisadores da Escola de Computação Interativa do Instituto de Tecnologia da Geórgia, Mark Riedl e Brent Harrison, divulgou um paper sobre o “uso de histórias para transmitir valores humanos a agentes artificiais”. Educando os robôs com narrativas que enriquecem a experiência humana, eles talvez aprendam a comportar-se socialmente de maneira adequada em situações rotineiras, sem apresentar desvios e comportamentos psicóticos, acreditam os dois professores, que ao protótipo do sistema, ainda em testes, deram o nome de Quixote.

Até hoje os avanços da biônica, cibernética e inteligência artificial interferiram mais diretamente no mercado de trabalho, tirando de mãos e cérebros humanos várias ocupações maquinalmente executáveis e outras nem tanto, como escrever noticiosos, editar páginas da Wikipédia e atender clientes com respostas, recomendações e outros serviços de uma assistente pessoal, embora sem a voz sexy de Scarlett Johansson, a incrementada Siri do filme Ela.

Volta e meia um sabichão da cultura digital acrescenta uma nova profissão ameaçada por algoritmos. Até advogados já puseram na lista das espécies ameaçadas. A substituição dos humanos em quase todas as atividades ditas humanas é uma hipótese remota, relativizam outros sabichões. Para nos acalmar, ressalvam que as inteligências artificiais irão apenas cooperar com a gente, não raro reconfigurando o trabalho que ora fazemos.

As estimativas sobre a potencial eficiência da automação num futuro próximo brigam entre si. Há dois anos, um estudo da Universidade de Oxford alertou para a automatização de 47% dos postos de trabalho. Pesquisa recente do McKinsey Global Institute cravou em 5% as atividades laboriais que poderão ser automatizadas nos próximos anos. Segundo a International Federation of Robotics, já em 2018 haverá 31 milhões de “service robots” (empregadas virtuais, com as atribuições da Anita de Humans) nos lares do mundo inteiro, cuidando da casa, das crianças e dos idosos, sem que tenhamos de nos preocupar com obrigações trabalhistas.

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Os telemarqueteiros ainda não estão pela bola sete, mas um consultor de empresas de telefonia, impossibilitado de destruí-los, decidiu enlouquecê-los com a ajuda de um bot dos mais simples. Com sua própria voz pré-gravada, Roger Anderson “atende” as ligações identificadas automaticamente como telemarketing e embroma uma conversa com o robocaller por quanto tempo for necessário.

“Acabei de acordar, ainda estou meio grogue de sono. Pode repetir o que você disse?”, responde o bot. Pausa. O robocaller vende seu peixe de novo. E o bot começa a tergiversar. “Aceita um café?” “Sua voz me lembra a de uma antiga colega de colégio”. “Momentinho que estão tocando a campainha”. Parece infalível. Detalhes com a Jolly Roger Telephone Company.

Renomado pesquisador de Inteligência Artificial da Universidade de Sheffield, na Inglaterra, o professor Noel Sharkey tem outras preocupações. Presidiu por seis anos o Comitê Internacional para Controle de Armas Robotizadas (ICRAC, na sigla em inglês) e conhece a fundo as dificuldades de se acompanhar o ritmo do desenvolvimento das novas tecnologias, antever problemas nunca encarados e desse modo assegurar o uso pacífico de robôs e armas automatizadas, vulneráveis à ação de hackers e grupos terroristas e às pressões do Complexo Industrial-Militar.

Sharkey e seus confrades do ICRAC, e não apenas eles, receiam por uma escala desenfreada de drones e demais artefatos controlados remotamente, sem exposição direta de soldados à reação inimiga. Já pediram que tais armamentos fossem banidos ou, no mínimo, submetidos a uma regulação rigorosa. Não lhes deram atenção. Só se a Terra parar, darão. Volte, Klaatu.