Monique David-Ménard explora o desejo humano através do animismo

Ensaísta lança luz sobre o fetiche dos objetos a partir da filosofia

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Por Sérgio Medeiros
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Em seu livro A Vontade das Coisas, Monique David-Ménard afirma: “Eu sei ser professora de filosofia; sei também exercer a psicanálise; e, na junção dessas duas atividades, sei criar redes de pesquisa internacionais que perduram por décadas, participar da criação e da direção de instituições e associações que trabalham para desbravar e desenvolver esses caminhos”. É o retrato de uma intelectual francesa atuante e produtiva, com passagens pela América Latina e pelo Brasil, onde dialoga com, entre outros, Vladimir Safatle e Eduardo Viveiros de Castro. O livro recém-lançado tem um subtítulo que me desconcertou: O Animismo e os Objetos. Ora, falar da vontade das coisas já é falar de animismo e de objetos. O objetivo desta resenha é pelo menos tentar entender essa redundância, a qual, espero, poderá revelar-se esclarecedora, já que não poderei comentar em detalhes, neste breve espaço, uma pesquisa tão complexa como a de David-Ménard. Antes de mais nada, a impressão de que o subtítulo é um pouco desajeitado (não direi ainda que é desnecessário) é confirmada pelo estilo da ensaísta, que é um tanto emaranhado e repetitivo (redundante). A frase “Coisa que damos, coisas que vendemos e coisas que não devem ser nem vendidas nem dadas, mas guardadas para serem transmitidas” é repetida várias vezes, como se tivesse valor ritualístico ou mágico, o que, decerto, está de acordo com o tema do ensaio: o papel dos objetos nas sociedades idólatras, modernas e não modernas.

A filósofaMonique David-Ménard quando veio ao Brasil, em 2012 Foto: Tatiana Ferro/Cpfl

Outro dado estilístico que me chamou a atenção foi o uso da exclamação, sobretudo nas páginas iniciais e finais do livro. Ofereço este exemplo: “para Kant, a Coisa em si é radicalmente inacessível, porém a psicanálise encontrou um acesso ao inconsciente!”. Além das exclamações, que soam gratuitas, há muitas e sérias interrogações, já que a autora lê autores como Hegel, Freud e Foucault, entre outros, com olhar crítico e invejável erudição. A relevância do que escreve é evidente, e ela acaba cumprindo, é bom frisar, o que prometeu nas páginas iniciais. Ao comentar que analisará o fetiche – um objeto que fascina --, ela afirma: “Portanto, durante esta pesquisa, passarei progressivamente da questão dos objetos à questão dos lugares, da localidade de toda situação política e de toda situação de desejo”. Na conclusão de A Vontade das Coisas, David-Ménard resume com muita clareza o que fez: “Parti do papel dos objetos tanto no inconsciente sexuado como na propriedade. Chamei de animismo a relação com os objetos em que nosso desejo se fixa e corre o risco de se congelar, mas também o apego a coisas inanimadas na instituição jurídica da propriedade”. A seguir ela menciona “a moda intelectual contemporânea” que atribui alma aos vegetais e aos animais, não para negar as pesquisas nessa área, que são tão importantes para os movimentos ecológicos e artísticos contemporâneos, mas para delimitar melhor o escopo do seu próprio trabalho: o animismo do inanimado, “os objetos que brilham e se escondem”, como afirma. Diria então que o subtítulo do livro poderia ser lido, à luz desse esclarecimento, como “o animismo dos objetos inanimados”, e, nesse sentido, não seria redundante, mas realçaria o drástico recorte da autora.

Túmulo de Karl Marx no CemitérioHighgate, no norte de Londres Foto: Olga AKMEN / AFP

A arte animista não é um capítulo relevante, mas um dos melhores momentos do trabalho da ensaísta francesa acaba se revelando tocante e poético: é a leitura dos textos do jovem Karl Marx, para mim o ponto alto de A Vontade das Coisas. Num artigo de 1842, Marx discute o “furto” de madeira morta caída das árvores dos grandes proprietários e recolhida pelos pobres que vivem na penúria e usam os galhos para se aquecer no inverno rigoroso. Os galhos secos, socialmente mortos, permitem a sobrevivência dos despossuídos. Porém, numa leitura animista, os pobres também, ou antes de tudo, se identificam com essa madeira morta, abandonada no chão. Marx afirma: “A própria natureza representa nos gravetos e galhos secos, quebrados, separados da vida orgânica, em contraste com as árvores e os troncos firmemente enraizados, cheios de seiva, assimilando ar, luz, água e terra na forma que lhes é própria e em sua vida individual, como que o antagonismo de pobreza e riqueza”. 

Toby, o rinoceronte branco mais antigo do mundo, em seu recinto no zoológico Parco Natura Viva. Foto: Giorgio CORTESE / Parco Natura Viva / AFP

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A leitura que David-Ménard faz do jovem Marx é riquíssima (com o perdão do trocadilho), e por conta disso não poderei resumi-la aqui. Gostaria apenas de citar, para concluir, aquilo que ela afirma, a partir de Marx e outros pensadores, sobre a “nossa” magia, que é o animismo das sociedades modernas e democráticas: “Na realidade, os objetos encerram em si a selvageria das sociedades ditas democráticas e racionais, pois não percebemos que a importância atribuída por essas sociedades à propriedade garantida pelo direito é nossa magia”. 

A vontade das coisas: o animismo e os objetos Autora: Monique David-Ménard Tradutora: Raquel Camargo Editora: Ubu Editora Ano: 2022

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