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Movimento que revelou Pedro Almodóvar completa 40 anos

La Movida foi a maior expressão da contracultura de Madri

Por João Eduardo Hidalgo
Atualização:
O cineasta espanhol Pedro Almodóvar Foto: Kena Betancur/Reuters

O termo La Movida foi criado para nomear o movimento de contracultura que aconteceu em Madri, e nos principais centros urbanos espanhóis, do final dos anos 1970 e começo dos anos 1980. Quando o ditador morreu em 1975 a Espanha era uma nação pobre, atrasada e perdida numa realidade que remontava ao início do século 20. O nome e definição do movimento não era preocupação de nenhum dos implicados nele, nunca houve um manifesto, diziam ‘estamos en el Rollo’ ou ‘yendo de movida’, criando um vocabulário que parece ter vindo da experiência de sair de casa para comprar substâncias alucinógenas, ou para meter-se em espaços underground (bares, café-concertos e congêneres). O movimento é herdeiro da Pop Art e costuma ser apontado como um dos primeiros sinais do seu início a criação, em Madri, do grupo pop Kaka de Luxe (Merda de Luxo), em 1977, liderados pela cantora Alaska, figura chave de La Movida. Esta New Wave trouxe um grupo de pessoas que não tinham experiência com a música, mas estavam dispostos a montar uma banda e dar shows-happenings. O outro eixo (eram dois fundamentais – a música era o primeiro) de La Movida foram as artes visuais, principalmente a pintura e a fotografia, nela foram significativas as presenças do pintor Guillermo Perez Villalta e do fotógrafo Pablo Pérez-Mínguez (1946-2012). A grande promotora do movimento foi a galerista Blanca Sánchez (1948-2007), que incentivou muitos dos artistas a produzirem e fez uma imensa exposição comemorativa no início de 2007 e partiu tranquila. A marca fundamental do movimento foi se apropriar dos elementos da sociedade de massa e usá-los como material de construção poética.

Esquina Almodóvar, chamada assim por ele, confluência das ruas Alcalá, Caballero deGracia e Gran Vía. Nesta esquina, Esteban (EloyAzorín) de 'Todo sobre mi madre' (1999) foi atropelado e Isabel (Penélope Cruz) quase deu a luz em 'Carne Trémula' (1997) Foto: João Eduardo Hidalgo

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Neste ambiente aparece Pedro Almodóvar que se junta a uma figura indefinível, que era Fabio de Miguel (ou Fanny McNamara), nascido em 1957 em Madri, que frequentava a Casa das Costus (diminutivo de Las Costureras, formada pelos pintores Juan Carrero 1955-1989 e Enrique Naya 1953-1989), e circulava pela cidade assustando aos franquistas semi-apodrecidos e os conservadores em geral. Fábio não era músico e como Almodóvar não tinha voz alguma, mas a ideia era mais uma questão estética, de parecer, do que realmente ser. A dupla dinâmica lançou um LP de vinil, chamado Como está o banheiro de senhoras! Almodóvar começou a ficar conhecido depois de ser selecionado para participar da mostra New Directors/New Movies do MoMA (Museum of Modern Art) de Nova York, em 1985 com Qué He hecho YO para Merecer Esto?! (O que EU fiz para Merecer Isto?!).

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Quanto ao seu método de criação, faz parte do universo Almodóvar usar argumentos, detalhes, personagens de filmes que ele admira na composição de seus roteiros, fazendo citação, referência e incorporando o elemento parodiado à nova obra. E a partir de 1995 começa a retomar personagens e historias de sua própria obra, de outro ponto de vista ou com outro tratamento, recurso que eu chamo de autocitação paródica. Por exemplo, a história de Volver (2006) é o resumo do livro da escritora Amanda Gris (Marisa Paredes), que é rejeitado por sua editora no filme La Flor de mi Secreto (1995). Como já disse o cinema, e em segundo lugar a literatura, sempre foram fontes fundamentais na criação de Pedro Almodóvar. Mas nos últimos anos, principalmente depois de La Piel que Habito (2011) as artes visuais voltaram a ter importância central na narrativa almodovariana, neste filme o diálogo é com a obra de Louise Bourgeois (1911-2010), Guillermo Pérez Villalta, Goya e Velázquez.

O penúltimo filme Los Amantes Pasajeros (Os Amantes Passageiros), de 2013 é uma grande enciclopédia almodovariana de citações e referências a personagens e situações dos seus 18 filmes anteriores. Temos aqui um casal que se separa, com a mulher jogando a mala pela janela e tentando matar-se por amor, além da virgem que é sensitiva (elementos de Mujeres al Borde de un Ataque de Nervios, 1988). Atentar para os nomes, nunca gratuitos em Almodóvar: a cafetina é Norma Boss (Normal e Chefe), o piloto é Acero (Aço, tem mulher e namorado), o ator é o Sr. Galán (o que se espera de um ator), o empresário desonesto Sr. Más (quer sempre mais) e o co-piloto é o Sr. Morón (idiota, retardado). Lembrar de Qué He Hecho Yo para Merecer Esto, em que a pobre dona de casa vivida por Carmen Maura se chama ‘Glória’ e a prostituta vivida por Verónica Forqué é ‘Cristal’.

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No novo filme o personagem central é uma mulher, Julieta, retratada em dois momentos de sua vida, nos vinte e nos quarenta. A relação mãe e filha também é fundamental na trama, fator redundantemente paródico em Almodóvar, lembremos Tacones Lejanos (De Salto Alto, 1991) que trata da doentia relação de Rebeca (Victoria Abril) e Becky (Marisa Paredes); e Volver (2006). Na entrevista de 20 de março de 2016, para El País Almodóvar esclarece que se baseou em três contos de Alice Munro, escritora Prêmio Nobel em 2013, que são Chance, Soon e Silence, que tem como personagem central Juliet e fazem parte do livro Runaway (A Fuga em português e Escapada em espanhol). Para os mais atentos devo lembrar que a personagem Vera Cruz (atentar para o nome, “la vera cruz” em espanhol significa ‘a verdadeira cruz’) de La Piel que Habito está lendo, no seu quarto-prisão, Escapada de Munro. E Almodóvar sugeriu que Elena Anaya lesse o livro para inspirá-la na criação da personagem, na época foi divulgado que Almodóvar tinha os direitos de Escapada desde 2009. Neste filme novamente as artes visuais tem papel central na história, a escultura O homem sentado do artista Miquel Navarro é um fio condutor na trama, também aparecem quadros de Lucien Freud (1922-2011) e Richard Serra. Na parede do apartamento de Julieta, logo no início do filme, vemos uma fotografia da esquina da Calle Alcalá com a Calle Sevilla (do Palacio de la Equitativa) que dialoga com a ‘esquina Almodóvar’ (Alcalá com Gran Vía), tão amada e fotografada pelo próprio diretor. 

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O início de La Movida é aceito como sendo 1977 e seu final é fixado por volta de 1985, com o fechamento da sala de espetáculos Rock-ola de Madri e o desaparecimento do programa de televisão La Edad de Oro (1983-1985) apresentado por Paloma Chamorro (1949-2017). Pedro Almodóvar acabou de celebrar 68 anos no último dia 24 de setembro, tem 20 filmes no currículo, La Movida completou 40 anos de surgimento, com um grande epitáfio, quase todos já se foram. La Movida renovou, ou ressuscitou, o panorama cultural espanhol e Almodóvar transformou o cinema espanhol em uma plataforma de realização pessoal e estilística, sem precedentes na história da sétima arte. *João Eduardo Hidalgo é doutor em comunicação pela USP e pela Universidade Complutense de Madrid. Professor da Unesp. Autor de 'Cinema Espanhol: Nascimento, Alguns Caminhos Trilhados, Possibilidades' (2013) 

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