Museus começam a decidir como a pandemia será lembrada

Fotografias, objetos e obras de arte vêm sendo reunidas para formar o imaginário desta época

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Por Adam Popescu
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LOS ANGELES — Em meados de março, o garoto Franklin Wong, de seis anos, capturou com simplicidade a frustração de ser um estudante da rede pública de Los Angeles após o cancelamento das suas aulas. Ele escreveu em grandes letras de forma: “Não pode sair", e acrescentou uma carinha triste feita com giz de cera verde e vermelho como parte do dever de casa.

'Defiant' (2020), foto de Mitchell Hartman tirada no bairro de Corona, no Queens, em Nova York Foto: Museum of the City of New York

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Essa pode ser a primeira vez que a obra de um aluno do primeiro ano do ensino fundamental será destinada ao acervo permanente de um museu, e não à porta da geladeira dos pais, novidade que sublinha o quanto os curadores estão de aventurando por mares nunca antes navegados.

O Autry Museum of the American West (Museu Autry do Oeste Americano), que adquiriu recentemente o diário de Franklin, está entre o crescente contingente de museus, instituições acadêmicas e sociedades históricas em todo o território dos Estados Unidos que começaram a registrar esse momento de incerteza coletiva na guerra dos EUA contra o coronavírus.

“Os museus têm a responsabilidade de enfrentar a história de frente", disse Tyree Boyd-Pates, 31 anos, curador-assistente do Autry, que tem como objetivo reunir momentos de uma vivência compartilhada como “oportunidade de registrar como o Oeste lidou com a epidemia".

Pintura produzida porJake Sheiner durante a quarentena retrata seu cotidiano Foto: USC Library

Jake Sheiner, de 33 anos, garçom de Glendale, Califórnia, que está desempregado desde meados de março, pintou 22 cenas da vida em quarentena dentro do seu apartamento, doando as obras para a as Bibliotecas da Universidade do Sul da Califórnia. Em Nova York, Mitchell Hartman, fotógrafo comercial aposentado, tem caminhado pelas ruas fazendo fotos da sua região natal, Queens, imagens que ele compartilha com o Museu da Cidade de Nova York.

Os museus não procuram apenas obras de artistas, mas também as lembranças das pessoas — quanto mais pessoal, melhor — em uma iniciativa que lembra a coleta de depoimentos em primeira pessoa, evidências materiais e registros históricos por parte das instituições culturais após o 11 de setembro. Mas alguns estudiosos e historiadores apontam para os desafios de hoje no retrato autêntico de um acontecimento de acordo com o maior número possível de ângulos, sendo que não há previsão para o seu fim. E eles indagam: quando tudo é um artefato, o que é realmente importante? E quais relatos a respeito da covid constarão nesses arquivos? Quais relatos não serão representados?

O projeto do Autry segue os passos da iniciativa Collection Stories, do Museu Nacional de História e Cultura Afro-Americanas, e da Sociedade Histórica da Califórnia, do outro lado da cidade. Todos pedem ao público que documente sua vivência do período da covid-19 em todo o estado.

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O Museu da Cidade de Nova York, e o Museu Nacional Smithsonian de História Americana, o Museu Cape Fear e o Museu da Cidade de High Point, na Carolina do Norte, também começaram atividades semelhantes.

Os apelos deram resultado. Bob McGinnis, de 81 anos, sofre de doença cardíaca, obesidade e pulmões lesionados, disse que sentiu a necessidade de compartilhar sua experiência, “por questões históricas", depois que ele e a mulher, Sandi, contraíram a covid-19 com centenas de outros passageiros em um cruzeiro turístico em janeiro.

“Fo algo que chamou muita atenção para a minha fragilidade", disse ele em um ensaio de três páginas endereçado aos filhos e netos, e enviado também para o acervo da covid do Museu Histórico da Saliente e da Planície em Canyon, Texas.

O Autry, por sua vez, está reunindo receitas, equipamento de proteção individual, máscaras com inspiração na cultura dos índios americanos, e relatos orais para seu novo projeto, “Collecting Community History: The West During covid-19” (Reunião da história comunitária: o Oeste durante a covid-19).

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Boyd-Pates começou a trabalhar no Autry em janeiro depois de comandar uma retomada das atividades do Museu Afro-Americano da Califórnia, onde sua gestão na curadoria incluiu a organização de uma retrospectiva marcando os 25 anos dos distúrbios de Los Angeles em 1992. Ele diz que artigos de “importância histórica e cultural” ligados à covid são enviados digitalmente e compartilhados na internet.

Entre os cerca de 160 artigos reunidos desde abril estão um diário ilustrado de Tanya Gibb, moradora de Gardena, Califórnia, que foi levada três vezes ao pronto socorro no segundo trimestre antes de ser hospitalizada com febre alta dias antes de completar 37 anos. 

Suspeitava-se que Tanya tivesse o vírus, mas ninguém a testou nas visitas anteriores porque ela não tinha viajado ao exterior nem sido exposta diretamente. Essa perturbação e confusão na vida dela — passados dois meses, ela disse que está finalmente recuperando o paladar e o olfato — retrata uma frustração comum entre muitos americanos, disse Boyd-Pates.

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“A ideia é esclarecer esse momento da história, tão surpreendente e confuso, por meio da captação de máscaras, páginas de diários e receitas caseiras enviadas pelas nossas comunidades", acrescentou ele.

Os organizadores tiveram uma década após os ataques de 11 de setembro de 2001 para reunir diferentes perspectivas da história que seriam examinadas em acervos culminando no Museu Nacional e Memorial ao 11 de Setembro, no marco zero — e ainda mais tempo para criar os muitos Museus do Holocausto espalhados pelo mundo.

O historiador David Kennedy, da Universidade Stanford, autor do premiado “Freedom From Fear: The American People in Depression and War, 1929-1945” (Livres do medo: os americanos durante a depressão e a guerra), diz que os museus e acervos voltados para a covid são uma boa ideia. Mas ele acrescenta, “depende da execução".

“Um museu bem-sucedido desse tipo deve trazer contexto e possibilitar que os futuros visitantes compreendam o teor e o temperamento da época, incluindo suas desigualdades, raciais e de todo o tipo", disse Kennedy.

No caso dos museus do Holocausto e do 11 de setembro, artigos pessoais representam as lembranças e os traumas das pessoas comuns. Conforme as instituições correm para serem testemunhas da pandemia, alguns historiadores perguntam, será que elas nos representarão a todos, mostrando também as profundas divisões que esse vírus sublinhou?

“Os museus são lugares onde nos reunimos para dar sentido à nossa experiência humana compartilhada", disse Martha S. Jones, professora de história da Universidade Johns Hopkins. “Ainda assim, o fardo, a dor e o pesar desta pandemia não são vivenciados de maneira igual nas muitas comunidades diferentes do país.”

A covid-19 expôs o preconceito racial contra os americanos de origem asiática. A doença tem afetado desproporcionalmente negros e latinos. Jones indica que museus localizados, como o Museu Charles H. Wright de História Afro-Americana, em Detroit, ou o Museu de Arte de Baltimore, poderiam retratar melhor essa dimensão e, talvez, criar novas narrativas em vez de ecoar a mesma história. Ela aponta para os vídeos de celular do que ela chamou de “policiamento excessivo” mostrando pessoas usando as máscaras errado, ou simplesmente não as usando, como evidências que também deveriam ser reunidas para os frequentadores dos museus do futuro.

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Brenda Stevenson, professora de estudos afro-americanos na UCLA, sugere que os museus também exponham “relatos orais, vídeos do TikTok, contas de jornais, depoimentos de funcionários dos hospitais e dados da Johns Hopkins e do CDC".

Os acervos devem incluir leitos hospitalares, e até registros de desemprego e das teorias da conspiração, acrescentou ela, que ajudam a “compreender melhor esse acontecimento e explicá-lo ao público do futuro".

Em Nova York, mais de 4 mil fotos do cotidiano foram compartilhadas pelos cidadãos com a hashtag #CovidStoriesNYC, plataforma de rede social do Museu da Cidade de Nova York organizada por Sean Corcoran, curator de mídia impressa e fotografia.

Corcoran disse que, conforme a crise se estende, “debatemos os tipos de materiais que vamos incorporar ao acervo".

Ele destacou que, quando a destilaria Kings County Distillery, no Brooklyn, passou a fabricar desinfetante para as mãos, ele guardou um frasco como artefato para mostrar “como as empresas locais estão mudando para lidar com a crise".

Mas Kennedy alerta que os curadores que tentam adivinhar o futuro podem ser atraídos pela nostalgia e pela exploração; o objetivo é envolver o público e informá-lo — e não apenas satisfazer uma curiosidade". Ele destacou que a Sociedade Histórica de Nova York “tratou de temas como o envio de japoneses para campos de concentração de maneira bastante exploratória, sem simplesmente criar um memorial da vitimização".

Ele gostaria que instituições históricas tivessem se concentrado em retratar a gripe espanhola de 1918 ou a peste bubônica do século 14, pois historiadores e cientistas ficam “coçando a cabeça, querendo entendermelhor por que não sabíamos mais", disse ele.

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“Qualquer estudo sério do passado deve estar consciente do perigo de esperar demais", acrescentou ele. “Queremos entender o que houve e por quê.” / Tradução de Augusto Calil

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