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Na estrada com o menino-prodígio

Um passeio pela personalidade de Tony Blair às vésperas de ele delegar o poder

Por Martin Amis
Atualização:

Não é ruim passear de carro pela cidade com Tony. O revestimento de aço do veículo, como observa o primeiro-ministro, é tão espesso que o interior lembra um Ford Focus, não um Jaguar; e é preciso usar quase toda a força para fechar a porta, que parece uma placa de concreto. Mas partimos. Policiais agachados passam como vespas para liberar o caminho. Brecamos no máximo uma vez. O poder lhe foge, mas ainda podemos nos regalar um pouco com ele no presente. E sim - é um prazer passear de carro pela cidade com Tony. Quando viaja, o primeiro-ministro tem algo em comum com os islâmicos do Reino Unido: costuma passar o sinal vermelho. Os islâmicos fazem isso para demonstrar desprezo pela lei local (e desprezo pela razão). Tony faz isso para frustrar os islâmicos. Noto que não usa cinto de segurança. Quando o alerto delicadamente para o fato, ele dá de ombros. Pergunto-me se é por isso que parece tão jovem - dez anos sem nenhum trânsito. Mas não foi sempre assim. A escolta policial, como tantas outras coisas, é conseqüência do 11 de Setembro. EDIMBURGO Estávamos no Corn Exchange, onde Tony denunciaria os nacionalistas escoceses. Antes do discurso, ele pronunciou: "Tive um choque nesta manhã". Pensei: aposto que sim. Lá estava, na primeira página do Independent, uma fotografia sua fazendo-o parecer caçado, sobretudo isolado, sob a manchete BLAIRAQUE. "Pesquisa exclusiva revela que 69% dos britânicos acreditam que, quando ele deixar o cargo, seu legado permanente será..." Foi inocência minha acreditar que esse era o choque que Tony queria discutir. Ele não está prestes a levantar "a persistência da questão do Iraque". "Fui à GMTV", continuou ele, "e as modelos de Kate Moss estavam lá. Cinco ou seis. Todas espantosamente belas." "Vestindo o quê?" "Não muita coisa. Mediam cerca de 1,90 m. Com saias incrivelmente curtas. Alguém disse: ?Você notou como as saias delas são curtas?? E eu: ?Não! Não!?" É preciso ter cuidado para não retratar erroneamente esse notório marido dedicado. Ele não agiu de maneira indecente nem machista; foi apenas jovial. Alto, mas não imponente, com os pés ligeiramente voltados para dentro ao caminhar e olhos azuis grandes, claros e gentis, Blair faz pensar que as palavras pueril e alegre têm raiz comum. Conforme envelhecem, não são apenas os policiais que ficam mais jovens; os primeiros-ministros também. Naquela manhã, Tony ainda apareceu para uma farra na sede do Partido Trabalhista - e mal eram 8h30. A pesquisa exclusiva do Independent também revelara, de modo bem mais discreto, que 61% dos britânicos acreditavam que Blair vinha sendo um bom primeiro-ministro, incluindo 89% dos partidários dos trabalhistas. Até 1995, os trabalhistas ficaram numa instalação descrita como "uma merda" por Blair. Da velha, remota e apertada sede, os peões foram para a Millbank Tower, diante do Parlamento, do outro lado do rio. Então veio o computador Excalibur, preparado para refutar as bazófias dos conservadores. Lá estavam a modernidade eleitoral e a máquina partidária. Blair "escolheu" os trabalhistas, mas se reinventou como sua antítese. Um mutante, um democrata-cristão alemão-americano de classe média. Comparado a ele, Gordon Brown é só peixe com fritas e cigarros Woodbine. O partido o ama: Blair é sua redenção. O COVIL O número 10 de Downing Street parece um hotel rural. Para cada secretário que trota ou anda a passos largos, há um camarada correndo com uma lata de lixo num carrinho. Logo se percebe que a atmosfera também é civilizada, quase igualitária. Downing Street, afinal, é presidida por um homem que atende por um diminutivo. Teoricamente, isso pode ter sido válido sob Ted Heath e Jim Callaghan, mas não sob (digamos) Dai LLoyd George, Andy Bonar Law, Stan Baldwin, Nev Chamberlain, Winnie Churchill, Hal Wilson ou Tony Elden. O governo de Blair usa um "estilo sofá": os canais padrão de influência são praticamente ignorados e o primeiro-ministro confia em seu círculo íntimo de lacaios hábeis com a mídia. Entrei no Den (Covil) para testemunhar a "Denocracia". O tema era a mudança climática, com negociações sobre a criação de um "mercado de carbono". Tony escutou seis ou sete vozes antes de sua conclusão: "Precisamos deixar claro o que isso significa para os americanos - que eles não vão passar contratos para os chineses. Vou resolver isso com ele. Com Bush." Então fomos ao Salão Branco, no andar de cima, para um podcast com Bob Geldof sobre a África - uma compulsão de 25 anos de Bob e um entusiasmo de 10 anos de Tony. No térreo havia uma convocação multinacional de bispos. O poder já foi descrito como uma droga, um afrodisíaco, um "veneno asqueroso" (nas palavras de Máximo Gorki); também é cancerosamente enfadonho. Como todos os políticos, Tony tem sete ou oito tipos de sorriso. Os sorrisos 2 e 3 bastariam para os bispos. O tédio é o que o mundo não vê - o trabalho oculto da dosagem e da complacência. Bob Geldof insinuou no Salão Branco: "O que aconteceu, afinal? A politização da celebridade ou a celebrização da política?" O que Tony será quando sair? Um ex-político? "Não", disse ele. "Serei uma ex-celebridade." BELFAST E lá estava o Castelo de Stormont, o ensopado edifício da intransigência. Blair tirou de letra algumas entrevistas antes dos pronunciamentos históricos no Grande Salão. Passei o tempo analisando a anarquia de seu sotaque, uma miscelânea de Durham, da Edimburgo da escola particular, da Austrália (do primeiro ao quarto anos de vida) e do inglês de estuário de Essex. Wanted é wantud e destructive é destructuv. O t final é regularmente engolido ("it''''s nok clear'''') e há uma franca oclusão glótica em seu wha''''ever. Blair recordava as férias de sua infância em Donegal quando o entrevistador disse: "Parece que seu principal legado será..." Os olhos azuis de Blair parecem se anular. Enquanto isso, lá fora, uma faixa grande proclama: LEGADO DE BLAIR 600.000 MORTOS NO IRAQUE. WASHINGTON Longe de ser uma sitting room (sala de estar), a Sit Room é a Situation Room (sala de gerenciamento de crises), onde Bush e Blair, e Condi e Cheney, fazem uma videoconferência com seus comandantes e embaixadores no Iraque. A qualquer momento ocorrerá um avanço encenado da dupla de líderes em direção ao Salão Oval, para diálogos com outros participantes sobre a África, o Irã e a "segurança energética". O estilo não é primeiro-ministerial, mas presidencial. Sentimos isso no portão da Av. Pensilvânia, onde enfrentamos guardas arrogantes, encarnações de enfastiado ceticismo. O lugar fervilha com a tensão orgulhosa do alto protocolo. Seu sabor americano é evidente na coreografia sistemática e no horror ao espontâneo. Remete a um set de filmagem. Dos falastrões semi-alfabetizados da blogosfera ao rei Abdullah da Arábia Saudita (que desafiou os americanos porque "não quer ser conhecido como o Tony Blair árabe"), quase todos concordam que o primeiro-ministro corrompeu seu mandato por ser fiel demais a George Bush - uma associação descrita como "trágica" por Neil Kinnock e "abominável" por Jimmy Carter. O próprio Blair foi notavelmente franco quando disse, em entrevista na NBC, que "em certo nível... é obrigação do primeiro-ministro britânico dar-se bem com o presidente americano", tradição que remonta a Churchill e à interrupção da influência imperial britânica. Uma coisa é ser "membro importante da UE". Outra é ser o que Clinton chamou de "a única nação indispensável do mundo". Tive um lampejo dessa disparidade no Salão Roosevelt. Alguns funcionários primeiro-ministeriais conversavam com um colega presidencial sobre viagens ao exterior. Quando Blair vai a algum lugar, conta com uma comitiva de 30 (e cinco guarda-costas). A comitiva de Bush conta com 800 (e 100 guarda-costas); se ele visita dois países na mesma viagem, o número é 1.600; três países, 2.400. Blair usa o transporte que estiver disponível. Valendo-se de transporte aéreo, Bush leva sua própria limusine, sua própria limusine reserva, seus próprios caminhões de reabastecimento e seus próprios helicópteros. Bush e Blair se despediram numa entrevista coletiva no Jardim das Rosas. O presidente se imagina uma pessoa muito espirituosa, tendo passado seis anos cercado de gente que se contorce de rir com a mais fraca de suas piadas. Mas é preciso dizer que estava em sua melhor forma naquele dia, generoso e afetuoso, pronto para reconhecer o sofrimento que infligiu a seu parceiro (necessariamente) subordinado. O primeiro-ministro reafirmou sua lógica cristalizada: depois do 11 de Setembro, o Ocidente não teve escolha a não ser a união contra um inimigo planetário; e Blair fez o que fez porque acreditava que era o certo. Enquanto os dois falavam, ouviam-se os manifestantes na Av. Pensilvânia, como se um duende enfurecido se escondesse entre os arbustos, a voz no máximo, mas longe de se sobrepor aos miados intermináveis das câmeras. IRAQUE Vesti meu colete de combate de 19 quilos e meu capacete à prova de balas e escalei penosamente a traseira do Hercules C130. Seu interior era todo vísceras - sacos, fios, canos, tecidos. Tony viajou na cabine de pilotagem e desembarcou no Aeroporto Internacional de Bagdá de terno e gravata. Em nenhum momento ele se submeteu ao estorvo do capacete ou do velcro emaranhado do colete. Lembrei quando desprezou o uso do cinto de segurança em seu Jaguar blindado. Tony cruzava a pista como um dos escolhidos, dos salvos, dos eleitos. Disparos de morteiro haviam acabado de destruir um Toyota Landcruiser no estacionamento da embaixada britânica, nossa primeira parada na Zona Verde. Seguimos num comboio para uma entrevista na residência do primeiro-ministro: sofás pesados, lustres dourados, rosas artificiais. Houve perguntas hostis e era possível ouvir o agudo queixoso de Blair e o grave didático do presidente Talabani: o progresso, as forças de segurança iraquianas, o diálogo com as tribos, o canal para o Irã, as negociações construtivas... Chegou a hora de decolar novamente - e avançamos por Bagdá. Algo aconteceu com Blair em Basra - na base aérea, que é quase tudo o que restou da operação no sul. Blair dirigiu-se a uma sala secundária para uma sessão fechada com o capelão, vários oficiais e uns 25 jovens soldados. Os superiores falaram de perdas de vidas e mutilações, do modo como "esses jovens tiveram de crescer muito rápido". Quando chegou a vez de Blair, o oxigênio lhe faltou. Não foi só o fato de parecer desinformado sobre munições, projéteis, táticas. Mostrou-se incapaz de encontrar o peso da voz, as palavras adequadas para o humor adequado. "Então os matamos mais do que eles nos matam (...) Vocês estão voltando lá e indo atrás deles. É brilhante, realmente..." O primeiro-ministro parecia o homem menos articulado da sala - e também o mais jovem. FRENTE A FRENTE Se Blair não estivesse ali, nada mais estaria. Foi acusado de maniqueu, por só enxergar luz e escuridão; e foi acusado de antinomiano, por buscar um status de anjo ao afirmar que suas ações são corretas em virtude do fato de que é ele quem age. Esse é o mecanismo ao qual Blair é reduzido, a meu ver, em sua lógica para o Iraque. As forças da escuridão estão dispostas contra as forças da luz; e não podemos nos permitir perder. Mas perderemos nesse teatro escolhido pela coalizão. Tive uma hora para falar do Iraque, frente a frente. Quase nunca se fica cara a cara com Tony Blair. Sempre há o fotógrafo, o documentarista, o assessor. Há também seu superego escolado na cautela, consciente de que a mais leve palavra pode se voltar contra ele. Não é verdade que o que vemos é o que temos: Blair é mais sensível e muito mais divertido que o homem que costumamos ver. Mas continua sendo verdade, no seu caso, que o que ouvimos é o que ouvimos. "Você viu A Rainha?", perguntei. Voávamos para a Alemanha num velho e vagaroso Hawker-Siddeley emprestado da frota real. "Hã... não." "O ator é você em pessoa. O brilho da juventude. O brilho do poder. Como ele é - o poder? Estonteante?" "Sim, mas isso é compensado pela responsabilidade. Gosto de pensar que posso passar sem ele. É preciso ser capaz de arriscá-lo e deixar algum espaço para o julgamento instintivo. É preciso encarar a possibilidade de perdê-lo. A fim de usá-lo." "E como é a sensação, agora que ele lhe foge? O poder." "Até agora tudo bem. Quando o dia chegar, provavelmente me agarrarei à aldrava. Mas por enquanto acho que posso simplesmente... deixá-lo ir."

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