Na reserva

O escândalo de corrupção na Fifa levanta a bola: será que dessa vez a reforma do futebol brasileiro sai do banco?

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Por André de Oliveira
Atualização:

Não é de hoje que os acordos e negócios da Fifa são alvo de suspeita internacional. Por isso, não se pode dizer que o escândalo de corrupção descoberto pelo FBI seja exatamente uma surpresa. O que tem impressionado mesmo é a rapidez com que novos acontecimentos e informações têm surgido: uma coisa meio parecida com os cinco gols que a seleção brasileira levou só no primeiro tempo do funesto 7 x 1. Desde 27 de maio, quando sete dirigentes da Fifa foram presos - entre eles José Maria Marin, ex-presidente da CBF -, muita coisa aconteceu. Joseph Blatter foi reeleito mandatário da Fifa, mas já anunciou que não ficará no cargo, convocando novas eleições para dezembro deste ano. As copas da Rússia e Catar, marcadas para 2018 e 2022, respectivamente, estão a perigo: suspeita-se que a escolha dos países faça parte do esquema de corrupção. Até le main de Dieu do atacante francês Thierry Henry, que tirou os irlandeses da Copa da África do Sul, em 2010, está sendo acusada de fazer parte do esquema. O presidente da Federação Irlandesa, John Delaney, disse que recebeu  5 milhões de Blatter para a Irlanda esquecer o caso e mandar a bola pra frente.

Anacronismo: instituições ultrapassadas fazem da bola um convite para falta de democracia e transparência Foto: UESLEI MARCELINO/REUTEURS

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No Brasil, o prédio da CBF, batizado com o nome de Marin, ficou anônimo do dia para a noite. Marco Polo Del Nero, atual presidente da entidade, disse que “não tem nada a ver com isso”, mas já começou a preparar sua renúncia, e o Controle de Atividades Financeiras (Coaf) revelou que Ricardo Teixeira movimentou nas suas contas quase R$ 500 milhões nos últimos quatro anos. A sensação geral é de quem vem mais por aí, mas de que essa também é uma ótima oportunidade para se rever muita coisa, especialmente no Brasil que, entra ano, sai ano, continua com as mesmas questões. Só para citar algumas: clubes endividados, calendário de jogos apertado, organização de campeonatos contestada.   Para o professor da Fundação Getúlio Vargas, Pedro Trengrouse, especialista em direito e marketing esportivo, o importante neste momento é não esquecer que a principal questão é a estrutura anacrônica das entidades esportivas, pouco democráticas e transparentes. Consultor da Organização das Nações Unidas (ONU) para a Copa de 2014, no Brasil, Trengrouse falou ao Aliás sobre os desafios que o futebol brasileiro tem pela frente, caso saiba aproveitar o momento. “O fato é que as organizações esportivas estão num limbo sem lei, onde não há regulamentação ou responsabilidade. O mundo mudou e elas não evoluíram.”

Com as revelações dos últimos dias envolvendo FIFA, CBF e outras entidades do futebol, começou a surgir um clima de “ufa, agora vai”. É para tanto? Sim. A sociedade está pronta para cobrar mudanças concretas dessas entidades. Eu realmente acho que é para ficar otimista. Só que não podemos vacilar. É preciso modificar as estruturas, não adianta caçar as bruxas, pura e simplesmente. No caso da convocação de novas eleições pelo Blatter, por exemplo, acho que o que está em curso é um grande acordo para acomodar todos os interesses envolvidos. Não acredito que esse movimento foi impensado. Acho que ele calculou muito bem os passos que está dando e tem tudo para fazer seu sucessor, que, acredito, será o Jérôme Champagne, grande aliado dele.

Quando você fala de modificações estruturais, a que exatamente está se referindo? Quando as organizações esportivas foram criadas, elas administravam a falta de dinheiro. Não havia capital, só existia a vontade de praticar um esporte. Nos últimos 30 anos, conduto, o esporte se transformou em um negócio multibilionário, mas as estruturas que o administram são exatamente as mesmas que foram criadas para trabalhar com a escassez de dinheiro. É natural que faltem mecanismos de controle, que falte transparência e até democracia, partindo do ponto de vista que essas instituições dizem respeito a muito mais gente do que simplesmente aos seus membros. Não é anacrônico, por exemplo, que o presidente do Flamengo, que representa e administra bens de uma torcida de 40 milhões de pessoas, seja eleito apenas com os votos dos associados do clube? Isso cria um conflito de interesses e uma falta de representatividade brutal. Essas instituições simplesmente não são representadas pela coletividade que garante os recursos que elas mesmas administram.

Isso também vale para a CBF? Sim. Será que a CBF diz respeito somente às 27 federações estaduais que a compõem? Ou ela diz respeito ao povo brasileiro e aos clubes brasileiros que jogam as competições, formam os atletas e dão sustentação à pirâmide do futebol? Toda a forma com que o esporte está organizado no Brasil remonta a uma legislação criada em 1941, durante a ditadura do Estado Novo, período em que o Brasil chegou a flertar com o fascismo. Um dos artigos dessa lei fala até mesmo em proibir que mulheres pratiquem esportes que não estejam de acordo com as suas condições de natureza. Como isso pode dar certo? Esse texto veio sofrendo remendos, mas sua estrutura está toda valendo: clubes e ligas amadoras que formam federações estaduais, federações estaduais que juntas formam as confederações.

O Bom Senso F.C., movimento que pede mudanças no futebol brasileiro, cobra mais participação dos jogadores nas decisões. Essa é uma forma de modificar essa estrutura? Sim, eles têm toda razão. Todo atleta, participando da competição de uma entidade, tem que ter direito a voto nessa entidade, e o mesmo vale para os clubes. Eu não vejo razão para que isso não aconteça. Um exemplo muito claro disso: de quantas competições as federações estaduais participam na CBF? Zero. Por que, então, são essas mesmas federações que votam para eleger os dirigentes da CBF? Esse modelo precisa ser revisto. A simples ausência de jogadores e clubes no colégio eleitoral das entidades demonstra claramente que elas não têm condições de gerir esse grande negócio que virou o esporte no século 21. Há outra questão essencial: sem democracia não há transparência. E isso vale tanto para os clubes quanto para a CBF. Todo torcedor, todo brasileiro, deveria poder ter livre acesso para opinar e analisar contratos firmados por essas instituições. Falta de participação da comunidade esportiva nas decisões do esporte brasileiro e pouquíssima transparência. Esses são os dois principais problemas.

Saindo um pouco das questões estruturais e descendo para a organização dos nossos campeonatos. Todo ano a importância dos campeonatos estaduais, que acabaram faz cerca de um mês, é colocada em xeque. Qual é a real importância deles? A realidade da maioria dos Estados é muito diferente da do Rio de Janeiro e de São Paulo. A maioria dos campeonatos estaduais poderia durar o ano inteiro, porque, atualmente, só temos oito Estados com clubes na primeira divisão. O Brasil tem cerca de 800 clubes de futebol e apenas 100 jogam o ano inteiro; os outros 700 jogam cerca de 4 vezes por ano. Se houvesse atividade para esses clubes o ano inteiro, haveria uma geração de R$ 600 milhões por ano na economia brasileira e a criação de 30 mil novos empregos. Existe interesse público para que isso aconteça. Agora, é necessário conhecer a realidade de cada um dos campeonatos para que se possa encontrar soluções locais para garantir essa atividade. Por outro lado, também é necessário diminuir a carga de jogos deficitários dos grandes clubes brasileiros, obrigados a jogar muito porque têm de sustentar os campeonatos estaduais, a Libertadores, a Sul-Americana e acabam não conseguindo desenvolver, ao máximo, o mercado.

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Como assim sustentar a Libertadores? A primeira fase da Libertadores e a Sul-Americana inteira são menos rentáveis para os clubes do que os campeonatos do Rio de Janeiro e de São Paulo. Não há mercado para nós na Argentina, Paraguai, Bolívia, Chile, Equador. Além disso, não temos condição de comparar os nossos campos com os campos de lá. Os times jogam em estádios completamente impróprios, que não passariam em nenhuma inspeção de uma autoridade brasileira. Nós devemos repensar o calendário tanto do ponto de vista interno (reforçando os estaduais, para garantir atividade o ano inteiro) como do ponto de vista continental, que oprime os clubes brasileiros em um mercado pouco significativo. Talvez fosse o caso de pensar em uma competição que fosse do Canadá ao Chile. A liga de futebol americano, por exemplo, fatura cinco vezes mais que a Fifa. O soccer nos Estados Unidos está crescendo e a gente não vai desenvolver mercado lá?

Então, o futebol só vai dar certo com mais dinheiro, mais marketing? Onde entra o lúdico nessa conta? Na verdade, colocar mais dinheiro na estrutura atual não dá certo. O problema do futebol brasileiro é gestão e governança. Imagine que o Vasco, em 1929, sem dinheiro de televisão, patrocínio ou bilheteria, construiu sozinho, com dinheiro dos seus sócios, o maior estádio da América Latina! Não teve 1 real de dinheiro público, sequer a doação do terreno. Se isso era possível naquela época, hoje não há desculpa, com tanto dinheiro rolando, para que as coisas não aconteçam no futebol. A razão pela qual elas não acontecem é que a governança é ruim. Por exemplo, o campeonato estadual do Rio de Janeiro acabou agora e a federação fez um balanço em que ela ganhou mais dinheiro do que os clubes. Se o dinheiro fica na federação e não nos clubes, como é que eles podem honrar os compromissos, evoluir, mudar alguma coisa?

O desastroso 7x1 da Copa do Mundo é apenas um reflexo de todo esse quadro de falta de transparência e participação? Eu acho que o resultado, em si, balança as estruturas, porém a gente não pode correr o risco de tratar os problemas estruturais à luz do resultado em campo. Por exemplo, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras indicou que o ex-presidente da CBF, Ricardo Teixeira, movimentou nas suas contas pessoais quase R$ 500 milhões nos últimos quatro anos. Esse é um sinal de que é preciso passar tudo a limpo. De onde vem esse dinheiro? Quem é que está pagando essa conta?

Estatizar a CBF seria uma forma de solucionar parte desses problemas? Do ponto de vista da legislação atual, as organizações esportivas no Brasil são consideradas pessoas jurídicas de direito privado. Porém, eu acabei de dizer que essa legislação é obsoleta e não acompanhou a evolução da sociedade. Talvez seja o caso de uma legislação especial, que trate das organizações esportivas como instituições sui generis. Por quê? Porque ela administra bens de uma coletividade e, por isso, precisa ter controle social. A CBF tem que prestar mais contas, tem que ser mais transparente, ter mais participação, mais democracia. Se as organizações esportivas continuarem sendo vistas como entidades privadas, tal qual empresas que têm donos e investimentos, vamos presumir que os dirigentes correm riscos, quando isso não acontece na realidade. O fato é que as organizações esportivas estão num limbo sem lei, onde não há regulamentação ou responsabilidade. O mundo mudou e elas não evoluíram. Nosso papel deve ser resgatá-las desse limbo. Só com uma nova lei geral para o esporte brasileiro será possível alterar esse cenário.

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