Na vertical

São Paulo comporta equilíbrio e vertigem, exaltação e esquecimento, amor e ódio; só não tolera a indiferença

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Por Leandro Karnal
Atualização:
  Foto: JONNE RORIZ | AE

Amanhã, São Paulo chega ao seu 462º aniversário. Eu havia começado este texto com um breviário histórico da cidade. As ideias fluíam em trilhos sólidos, mas usuais, quase um déjà vu. Abandonei o rascunho. Lembrei-me de Nia Vardalos no papel de Georgia em Falando Grego. Ela começa a explicar o Partenon para os turistas e eles fazem cara de tédio: a fala era engessada. Então, o rosto da personagem se ilumina e ela opta por discorrer sobre o vento que sopra naquele lugar, sobre as colunas que testemunharam filósofos e artistas. Ela derrama o coração sobre a Grécia e consegue a sedução inédita. Georgia incluiu-se no objeto que descrevia. Isso mudou tudo. Mudei meu texto.

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Na quarta-feira, fiz o cadastramento biométrico eleitoral. Voltei andando pelo Viaduto do Chá, em direção à Barão de Itapetininga. Minha memória foi atraída para um trajeto idêntico feito em 1987. Eu acabara de chegar para fazer doutorado na USP. Tudo parecia fascinante e um pouco assustador. Havia um medo de ser assaltado e um olhar nervoso para todos os lados. Sim, quando “eu cheguei por aqui, eu nada entendia”. Passando pela Livraria Francesa (que não existe mais), pensei na personagem de Balzac: Eugène de Rastignac. Voltei à cena quando ele olha para Paris e lança um desafio: “À nous deux maintenant !” Agora seria entre nós! Somos só nós dois, eu e você!

São Paulo era minha Paris; eu era Rastignac. Como profetizara um amigo meu, “era mais fácil ser holofote na província do que vela na metrópole”. Sim, era entre mim e São Paulo, e assim seria pelos quase 30 anos seguintes.

São Paulo é lar exigente. Ser alguém, entre tantos, é mais desafiador na Pauliceia. Aqui, topamos com um humanismo estranho, sou obrigado a me reinventar e a fazer mais. Vista por tantos (e com bons argumentos) como selva de pedra gelada, a cidade de mais de 11 milhões de habitantes traz esse segredo raro: ser mais. Tantos estrangeiros e brasileiros enfrentaram o desafio de São Paulo, como o português Raposo Tavares, o paraense Inglês de Sousa, o fluminense Raul Pompeia, os interioranos Raduan Nassar (Pindorama), Tarsila do Amaral (Capivari) e José Celso Martinez Corrêa (Araraquara). A lista completa seria imensa. Em algum momento, Rastignac sorriu ou não para eles. Citando meu ex-professor Nicolau Sevcenko (nascido em São Vicente, por sinal), todos tiveram a experiência de “Orfeu extático na Metrópole”.

Estrangeiros e brasileiros vieram para cá. Não apenas os artistas, mas também as massas de trabalhadores que ergueram esta cidade. O magnetismo urbano atraiu igualmente empreendedores, como Francesco Matarazzo. Haveria um império industrial sob seu comando se o italiano tivesse ficado em Castellabate? A cidade natal do conde tem, hoje, menos de 10 mil habitantes. Quem seria Francesco Matarazzo sem São Paulo? É também interessante indagar: quem seria São Paulo sem todos os muitos condes Matarazzos da sua história? O que seria de São Paulo sem seus operários imigrantes, seus serventes de obras e suas trabalhadoras? São Paulo ressignificou a vida do conde, como ressignificou a vida do jovem sapateiro anarquista, o espanhol José Martínez, assassinado durante a greve de 1917. Sonhos distintos e visões diversas do que seria progresso para o Novo Mundo. A memória de São Paulo é feita de exaltação perene e esquecimentos seletivos.

Para artistas, trabalhadores, empreendedores, criadores e sonhadores, esta cidade foi e continua sendo uma prova de fogo. É aqui que a têmpera de muitos é testada. Esse é o humanismo estranho que cumpre o mote de Nietzsche, “torna-te quem tu és”. Em cada esquina, encontra-se uma tribo e uma identidade para chamar de sua. A cidade comporta amor e ódio; só não tolera a indiferença.

Mas há um preço, como sempre. Nos trechos iniciais da bela obra A Capital da Solidão, Roberto Pompeu de Toledo lembra que o Rio é simbolizado pela marchinha Cidade Maravilhosa, exaltando a beleza ímpar daquele local. São Paulo, ao escolher sua música tema (em 2000), optou pelo clássico de Adoniran, Trem das Onze. Bem, o hino informal de São Paulo fala de um trem que está partindo e que não haverá atraso. Cariocas olham para os “encantos mil” e paulistanos olham para o relógio... Orfeu, aqui, tem pressa. A musa fica de lado pelo dever de cuidar da mãe. É uma estética também, mas protestante.

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Infinitas oportunidades ao lado de infinitos problemas. A urbe parece o Deus do Livro de Jó: tira para testar, repreende e restitui multiplicado. Bendito seja o nome do Senhor! Caos, pobreza, criação, riqueza, violência, preconceitos, racismo, oportunidades e humanismo, comoção de nossa vida estranha em São Paulo, como diria nosso Mário de Andrade (este, enfim, um paulistano da gema).

Ser o primeiro amor de uma pessoa é fácil, mero acidente biográfico. Ser o último amor é um imenso desafio. Conheço o mundo, porém São Paulo tornou-se meu último e maior amor. Lar é o lugar de onde não conseguimos mais nos mudar, pois está em nós e nós nele. São Paulo tornou-se meu lar. Parabéns para nós, 462 vezes. Foi e sempre será entre nós dois, como convém a quem se ama.

LEANDRO KARNAL É HISTORIADOR E PROFESSOR DE HISTÓRIA CULTURAL DA UNICAMP