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Não atile!

Imagem de garotinha que confundiu câmera com arma corre mundo e traduz horror da guerra

Por André de Oliveira
Atualização:

Talvez a imagem de Adi Hudea - bracinhos erguidos e punhos cerrados, olhos negros amendoados e amedrontados - tenha lhe aparecido em alguma rede social entre um meme engraçadinho, uma foto fofa do bebê de um casal amigo e um comentário político abespinhado. Talvez, de primeira, você não tenha dado atenção imediata a Adi - afinal, a competição de outras imagens é grande. Mas talvez, ao voltar um pouco na sua timeline, a expressão de Adi tenha se tornado mais clara: aquela criança estava se sentindo ameaçada.

Aos 4 anos, Adi é uma entre 5 milhões de crianças que passam privações na Síria Foto: Osman Sagirli

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Pouco se sabe de Adi Hudea, além de que é uma menina síria de 4 anos, órfã de pai, vivendo com a mãe e irmãos no Campo das Oliveiras, um acampamento de refugiados, em Atmeh, cidade no norte do país, perto da fronteira com a Turquia. Talvez a vida de Adi não tenha mudado em nada na última semana, mas seu rosto ficou conhecido em todo canto depois que a fotojornalista Nadia Abu Shaban tuitou seu retrato explicando que aquela criança tinha confundido a câmera do fotógrafo com uma arma, levantando o braço em posição de rendição. A foto se espalhou e o post original de Nadia (que declarou não ser a autora do retrato) foi compartilhado mais de 30 mil vezes. “Levantar a mão em forma de defesa é um gesto cultural aprendido, não é algo natural. Uma menina que fez isso aos 4 anos com certeza já vivenciou muitas situações de violência”, diz Norval Baitello, professor de comunicação e semiótica na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

A imagem ganhou redes sociais com a mesma rapidez com que foi posta em dúvida. Quem havia fotografado a criança? A explicação de Nadia correspondia ao que de fato aconteceu? Em uma das versões que surgiram, Adi era um menino e a foto teria sido feita em 2012. A BBC, no entanto, encontrou o fotojornalista Osman Sagril, autor do retrato, e desfez as confusões: a foto é de dezembro de 2014, Adi é, sim ,uma menina de 4 anos, perdeu o pai na cidade de Hama e viajou, com mãe e irmãos, 150 km para chegar ao campo de refugiados. O retrato foi publicado primeiramente por um jornal turco no começo de 2015 e, passados quatro meses, rodou o mundo. “Eu estava usando uma lente de telefoto e ela achou que era uma arma”, contou Sagril. “Percebi que estava aterrorizada quando, depois de fazer a foto, vi ela mordendo o lábio e com as mãos levantadas. Normalmente, crianças correm, escondem seus rostos ou sorriem quando veem uma câmera.”

O retrato de Adi Hudea não foi a primeira imagem de guerra a ser contestada. Desde, pelo menos, a cobertura da Guerra Civil Espanhola, feita por Robert Capa, as fotos e o papel dos fotojornalistas geram discussões éticas. A Morte do Soldado Legalista, fotografia de Capa que retrata o momento em que um combatente anônimo é atingido por uma bala, já foi questionada inúmeras vezes: não passaria de uma encenação, pois o equipamento disponível na época não permitiria o registro daquela forma. No caso de Adi, no entanto, talvez a veracidade do retrato tenha gerado discussão não apenas pela autoria momentaneamente desconhecida, mas também, como diz Baitello, porque a abundância de imagens na internet transformou a fotografia em algo banal, rotineiro, para toda hora. Assim, o espanto da menina diante da câmera seria algo impensável; afinal, quem se assustaria com uma simples foto? “A visão é um sentido fóbico, que desperta um alerta de ameaça em homens e outros primatas. Por isso, o olhar do outro é invasivo, ameaçador. É natural se assustar com uma lente gigante, o que não é normal é a rendição da menina.”

No Campo das Oliveiras, 28 mil pessoas, vizinhas de Adi Hudea e sua família, vivem apinhadas em barracas de lona, passando frio, chuva e dependendo exclusivamente de ajuda humanitária. Segundo estatísticas da Unicef, estima-se que mais de 5 milhões de crianças passem privações na Síria e 2 milhões vivam como refugiados fora de seu país. “A data em que a foto foi feita pouco importa. Ela é uma imagem que traduz exatamente o horror e a violência da guerra”, diz Fernando Costa Netto, fotojornalista brasileiro que já cobriu conflitos em Gaza e Saravejo. “Essas crianças nunca mais serão as mesmas e isso eu pude constatar quando voltei a Saravejo, em 2006, depois de cobrir a guerra, entre 1993 e 1994.” Se Hudea se rendeu diante uma câmera, crianças em Sarajevo desenhavam metralhadoras e pistolas na parede, como uma fotografia de Netto mostra. Para ele, são expressões diferentes de um mesmo problema: a infância roubada. “A guerra, que impactará suas vidas para sempre, é só uma para as crianças.”

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