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Não vale a pena

Enquanto a população carcerária cresce, o direito de defesa encolhe, criando um circuito de violência que leva até à barbárie da decapitação

Por Monica Manir
Atualização:
Saldo. Rebelião em Cascavel deixou cinco detentos mortos - dois deles decapitados Foto: MATEUS BARBIERI/JORNAL HOJE

Marina Dias é reincidente. Uma vez, e mais outra, esboça um círculo na mesa com o indicador. Quer mostrar como vivemos numa roda viva de insegurança, que começa na esfera da violência, passa pelo encarceramento desmedido, atravessa o crime organizado e volta à violência, então mais crua e assustadora, como as decapitações de presos na rebelião de Cascavel, no Paraná. 

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Nossa conversa tem foro privilegiado: o 21º andar do Edifício Itália, segundo maior prédio de São Paulo, onde fica o escritório da família. Ver a cidade de cima não faz com que Marina se isole da metrópole. Ela critica o alheamento, o não importar-se com o outro, o “que se matem na cadeia”. Filha de José Carlos Dias, ex-ministro da Justiça do governo FHC e hoje coordenador da Comissão da Verdade, é advogada criminal como o pai. Por três anos foi presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) e nesta entrevista explica, de imediato, por que o instituto se uniu à Heco Produções para fazer um documentário sobre o sistema de Justiça Criminal. 

Sem Pena, selecionado para o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro e com exibição prevista para 2 de outubro, quer mostrar como funciona o círculo vicioso desenhado na mesa. Rodado em cinco presídios de São Paulo e três do Rio Grande do Sul, o filme intercala depoimentos de encarcerados e especialistas. Pretende explicar, por exemplo, por que a população prisional brasileira é a que mais cresce no mundo. E por que, na contramão desse processo, o direito de defesa está tão em baixa. “As pessoas o veem como aliado da impunidade”, diz. “Elas não compreendem que, na verdade, é a garantia do cidadão contra o poder opressor do Estado.”

No que 'Sem Pena' difere de outros filmes que tratam do sistema prisional brasileiro?Achamos que faltava um olhar panorâmico, um olhar que não focasse apenas no sistema prisional. Por isso o documentário aborda o sistema de Justiça Criminal: o Poder Judiciário, a defensoria pública, a atuação do Ministério Público e o próprio sistema prisional brasileiro, cuja população aumentou 508% nos últimos 23 anos - e com uma política claramente seletiva. São jovens de 18 a 25 anos, a maioria negros e pobres. Estamos, enfim, prendendo ‘seletivamente’ e muito, e nem por isso nos sentimos mais seguros. A discussão do filme é esta: para onde estamos indo?

E para onde estaríamos?Estamos num círculo vicioso, que começa pela ausência do Estado. Costumo dizer que o Estado se faz ausente no cotidiano dessas pessoas a vida inteira. Mas, na hora de prender, é implacável. Joga na prisão e larga. Veja o número assombroso de pessoas que estão presas, mas podiam responder ao processo em liberdade, já que existe um princípio constitucional da presunção da inocência. A prisão provisória deve ser excepcional. Hoje, no entanto, 37% da população prisional é de presos provisórios. Além disso, muitos poderiam progredir de regime, mas não conseguem a análise dos seus benefícios porque o processo demora. Vão ter os benefícios reconhecidos depois que praticamente cumpriram toda a pena em regime fechado. E você tem um sistema prisional falido em termos de estrutura, com superlotação, falta de trabalho, falta de educação, em lugares propícios a doenças, com comida de péssima qualidade. É degradante.

Tudo isso favorece o crime organizado?Sim, ele ocupa esse espaço. Seus direitos não estão sendo garantidos? Vamos fazer o seguinte: você se associa aqui e a gente paga advogado, cuida de você e de sua família. De fato, quando o jovem sai, continua tendo uma estrutura e até consegue um status. Mas, se não estava envolvido com uma malha criminosa, agora está. Quem vai dar emprego a ele? É uma situação sem saída, que invariavelmente leva o jovem de novo à prisão. Fica esse círculo vicioso de cadeia-rua-cadeia-rua, que é dramático. 

Cogita-se que as decapitações em Cascavel seriam um sinal de disputa de poder entre facções criminosas. Por esse motivo teriam repercutido relativamente pouco? Dentro desse cenário de insegurança, a população pede a prisão, mas sabe que essas pessoas um dia vão sair de lá. Então, se estão se matando lá dentro, que bom. Mas por que estão se matando lá dentro? Por que a situação chegou a esse nível? A decapitação é muito brutal, é tirar o rosto daquela pessoa, um gesto simbólico de assustar a sociedade. A mensagem é ‘somos animais, somos capazes de arrancar a cabeça de alguém e vamos sair daqui e detonar’. 

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Um dos motivos dessa rebelião em Cascavel também seriam os maus-tratos. Eles reclamavam da violência institucional. Vivemos num país que tortura, e muito. Em 2011 fiz parte do conselho da comunidade, previsto na lei de execução penal. É composto por pessoas da sociedade civil e busca fiscalizar o sistema prisional fazendo visitas. Foi quando comecei a entrar nos presídios e conheci como funciona o RO, o regime de observação. Assim que o preso entra na cadeia, ele fica pelo menos cinco dias trancado numa cela escura, normalmente com vários outros. No Centro de Detenção Provisório de Pinheiros, por exemplo, o RO é um corredor com duas celas, uma do lado da outra, sem luz, que cheiram muito mal. Na hora em que você entra ali, vem um bafo quente. Os caras pegavam percevejo e me mostravam: ‘Olha aqui, doutora’. 

Para que serve isso?Para deixar a pessoa em choque, arrasada, desesperada, logo no começo. À medida que ela vai ficando lá dentro, sem direitos reconhecidos, quer arrancar cabeças. No Brasil, a pessoa é presa e só vai encontrar o juiz dali a cinco, seis meses. Em quase todos os demais países da América Latina, existe a audiência de custódia: a apresentação do preso em 24 horas ao juiz. Aqui isso não está previsto. Há um projeto de lei do senador Antonio Carlos Valadares, que a gente espera seja aprovado pelo Senado. 

O que o juiz faz nessa audiência?Analisa se o flagrante foi legal, se há necessidade de prisão preventiva, se a pessoa pode ou não receber medidas cautelares alternativas à prisão. Mas o papel do juiz em todo o sistema tem sido o grande nó. O Judiciário precisa estar atento às garantias institucionais individuais, observar a forma como a polícia tem atuado e não considerar válidas certas atuações. No entanto, em vez de garantir direitos, está chancelando uma série de arbitrariedades. O juiz não é um braço da segurança pública.

Que arbitrariedades são essas?Algo que acontece muito na periferia é a entrada franqueada, os policiais entrarem na casa da pessoa sem mandado. Há sempre a justificativa ‘existia a suspeita de que um crime acontecia lá’. Mas o tráfico, por exemplo, é um clássico tipo de crime no qual o policial não precisa entrar naquele momento. Há condições de pedir um mandado antes. Nas prisões em flagrante, 8% são feitas em domicílio. Destes 8%, 90% foram entrada franqueada. Está na Constituição que o domicílio é inviolável. 

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Há registro de quantas vezes a polícia não encontra nada? Não temos esse dado. É o pé na porta na frente dos filhos. No documentário, uma desembargadora aborda o tema: ‘Se entrarem aqui no prédio onde moro vão fazer certamente uma boa apreensão de drogas; só que ninguém entra aqui’. Mais que favorecer a polícia, o Judiciário está deixando o Executivo num papel confortável.

Como assim?O Executivo seria obrigado a capacitar melhor a polícia para investigação, por exemplo. No Brasil não existe uma polícia que investiga. Existe polícia repressiva, herança da ditadura, tanto que grande parte dos processos começa com prisões em flagrante. O próprio trafico de drogas... Quem está sendo preso? É o grande traficante? Não. É o usuário que está com um pouco mais de droga, ou o pequeno traficante.

É a favor da criminalização das drogas?Não acho que criminalizar resolva. Aliás, existe uma tentação da sociedade de achar que o direito penal resolve todos os problemas. Você criminaliza, mas não enfrenta. Joga embaixo do tapete. 

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Que sociedade é a nossa, que se apega tanto ao direito penal?É uma sociedade imediatista, que não olha para o todo, não percebe a importância de uma Justiça eficaz. Só se dá importância às garantias individuais quando se é processado ou se tem alguém próximo nessa situação. Também é uma sociedade intolerante com as diferenças. As pessoas acham que precisam se fechar cada vez mais nos seus condomínios, se proteger nos seus blindados e jogar as pessoas que trazem insegurança no sistema prisional. Não se interage. Nesse sentido, acho muito simbólica a Virada Cultural. ‘Ah, teve muita violência, não sei quantos arrastões...’ Não se bota nunca a periferia para conviver com a classe alta. Quando se faz isso, quer que tudo dê certo? É um encontro para viver a cidade, compartilhar o centro. Moro e trabalho por aqui, sei que tem muita violência, mas venho cedo a pé e vou embora à noite. Se algum dia sentir medo, será motivo de muita tristeza pra mim. Só uma postura de pertencimento pode fazer com que as coisas melhorem.

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Marina Dias é advogada criminal e ex-presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa 

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