Narrativas de Hans Christian Andersen fundam a fábula moderna

'O Patinho Feio e Outras Histórias' propõe texto pujante sem necessidade de uma moral

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Por Flávio Ricardo Vassoler
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Em uma de suas Fábulas, seguidas do Romance de Esopo, o autor grego (~620–560 a.C.) nos fala sobre Bens e Males: “Por serem fracos, os Bens foram perseguidos pelos Males e subiram ao céu. E perguntaram os Bens a Zeus como deveriam se portar entre os seres humanos. Ele disse que deveriam sobrevir não todos juntos aos seres humanos, mas um por vez. É por isso que os Males sobrevêm aos seres humanos continuamente – por estarem perto –, enquanto os Bens mais demoradamente, porque descem do céu”. 

Hans Christian Andersen lê para criança em pintura 

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Ora, por que os Bens seriam fracos em relação aos Males? (Quando pensamos na dificuldade para se conquistar algo nesta vida e a comparamos com a rapidez com que o sofrimento ceifa a nossa frágil alegria, sentimos a aridez da resposta.) Irmão pagão do Deus judaico-cristão, seria Zeus culpado pelo fato de os Males predominarem na terra? Mesmo que demorem mais a nos alcançar porque descem do céu, por que, ainda assim, os Bens deveriam sobrevir a nós um por vez? 

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Tais questões nos sugerem que a fábula esópica pressupõe interpretações plurais e potencialmente contraditórias. É como se um aforismo do autor irlandês Oscar Wilde (1854-1900) sussurrasse a Esopo: “Quando os críticos discordam entre si, o artista concorda consigo mesmo.” 

Ocorre que Esopo costuma arrematar suas fábulas com máximas que tendem a tornar unilateral o labirinto narrativo. Eis, então, a moral da história para Bens e Males: “Porque com bens nenhum de nós logo depara, mas pelos males, a cada dia, cada um de nós é atingido”. A máxima ao fim de cada fábula transforma Esopo em leitor de si mesmo – parece-nos que o crítico literário (e moralista) Esopo perde para a polissemia do Esopo fabulista.

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Para além da unilateralidade das máximas, a fabulação de Esopo parece levada às últimas consequências pelo escritor dinamarquês Hans Christian Andersen (1800-1875), em sua obra O Patinho Feio e Outras Histórias (Editora 34, ilustrações de Olaf Gulbransson e tradução de Heloisa Jahn). A partir de agora, sintamos as contradições lancinantes de uma mãe que clama pelo filhinho raptado pela Morte em A História de uma Mãe. Nesta narrativa, Andersen funde o ápice da polissemia fabular ao mais profundo clamor existencial.

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No princípio, uma mãe vela à cabeceira de seu filhinho doente. Súbito aparece um pobre velhinho a tiritar de frio. Angustiada, a mãe lhe pergunta: “‘Você acha que consigo salvar o meu bebê? Nosso Senhor não vai tirá-lo de mim...’ E o velho, que era a Morte em pessoa, fez um movimento tão esquisito com a cabeça que não deu para entender se estava dizendo que sim ou que não.”  Extenuada, a mãe se rende ao sono – é quando a Morte rapta seu bebê. Começa, então, a peregrinação da mãe rumo à sobrevida de seu filhinho.

A mãe logo depara com uma mulher que veste longos trajes negros – a Noite. Ela implora para que a Noite lhe revele aonde a Morte teria levado seu bebê. A natureza humana da Noite, no entanto, só revelará o paradeiro se a mãe lhe entoar as cantigas que já haviam embalado seu bebê. (Além de suscitar compaixão, o sofrimento alheio fornece a matéria-prima para a chantagem.)

Afônica, a mãe ainda é coagida por um lago a barganhar seu desespero uma segunda vez. Cristalino em sua covardia, eis o que o lago lhe diz: “Seus olhos são as pérolas mais puras que já vi. Se você chorá-los para mim, carrego você até a estufa onde a Morte vive e cultiva árvores e flores – cada uma delas é uma vida humana!” É como se o lago sussurrasse: é pegar ou largar (seu filhinho), mamãe – o que vai ser? (Triste mundo em que o martírio é o preço da bondade.)

Cega, a mãe alcança a estufa da Morte e logo ameaça arrancar todas as flores. “Não toque nelas! – disse a Morte. – Você está infeliz e agora quer tornar outra mãe tão infeliz quanto você...”. (Após colocar a mãe entre a cruz e a espada pela sobrevida de seu filho, a Morte cínica prega sermões pela vida dos demais.) 

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Em cada uma das mãos, a mãe retém a flor de uma vida. A Morte lhe revela que uma das flores que a mãe pretende arrancar terá um futuro glorioso. A outra terá uma vida repleta de terror e miséria. E mais: uma das flores é o filhinho que a mãe tanto busca.  Apavorada, a mãe começa a gritar: “Qual delas é o meu filho? Diga! Salve-o de toda essa miséria! Prefiro que você o leve para o reino de Deus! Esqueça as minhas lágrimas e tudo o que eu fiz e disse!”

Como conciliar o amor mais veemente por um filho com a abnegação que, no limite, aceita a separação eterna para que o ser amado não sofra terrivelmente? 

Em Esopo, a moral da história nos diria por quê. A pujança de Andersen, então, parece residir na visceralidade com que suas fábulas abertas escarafuncham feridas que ainda não foram (se é que um dia poderão ser) cicatrizadas. 

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*Flávio Ricardo Vassoler é doutor em letras pela USP com estágio doutoral na Northwestern University (EUA) 

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