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Nas barbas de Fidel

A blogueira de Havana que fala mal do governo reacende na ilha a esperança de liberdade

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Como se tivesse sido pouco, ontem me foi dado um novo prêmio. Ele poderia ter um título de filme que passa aos sábados: A Blogueira Cativa. Consiste em não me deixarem viajar a Madri para a cerimônia de entrega do prêmio anterior, o Ortega y Gasset, concedido pelo jornal El País. Aqueles que me outorgaram a nova premiação preferem não revelar seus nomes nem sobrenomes, e por isso este blog os menciona apenas como "eles". São "eles" que, metidos em uniformes militares, manejam nossos direitos de cidadãos sem nos dar nenhuma explicação, apenas ordens. Não acho que sou merecedora de tantas atenções, mas se os funcionários do governo insistem, aceito esta nova distinção. Esquecem "eles" que no cyberespaço minha voz pode viajar sem limites, sair e voltar sem pedir permissão. Não importa se mantêm retido meu passaporte. Já faz um ano que tenho outro. E no espaço destinado à nacionalidade, este documento exibe uma breve palavra: "blogger". Calma, caro leitor de jornal, distinto apreciador do papel, de seu cheiro e de seu tato, não vá embora. Se você tem preguiça dessa conversa de blogs e blogueiros, a começar por estes nomes - blogs e blogueiros -, saiba que o blog da cubana Yoani María Sánchez Cordero é uma mosca branca no cyberespaço: eis um blog de fato relevante. Seu caráter excepcional é fruto de uma receita até então inimaginável: Yoani mora em Havana, suas mensagens falam mal do governo, ela assina embaixo seu nome verdadeiro e publica no site uma foto de seu rosto. O intrigante mistério é que ainda não mandaram a Yoani para o paredón, nem ao menos para a prisón (até o fechamento desta ediçón). "Para Cuba, os escritos de Yoani Sánchez representam um avanço significativo na era pós-Fidel", diz o jornalista do New York Times Anthony DePalma, autor de O Homem que Inventou Fidel (Companhia das Letras). "As críticas que ela faz são até muito gentis. Mas é sua presença marcante e a atuação às claras que transformam o blog em um acontecimento tão importante." O blog de Yoani Sánchez chama-se Generación Y (www.desdecuba.com/generaciony), uma homenagem aos cubanos nascidos entre as décadas de 60 e 70 e registrados com nomes de influência russa: "Yoandri, Yusimí, Yuniesky, Yanisleidi". Yoani tem 33 anos. É formada pela Faculdade de Artes e Letras de Havana, com especialização em filologia hispânica e literatura latino-americana. Até aí estava tudo ótimo. Só que a Yoani resolveu defender uma tese intitulada Palavras sob Pressão: um Estudo sobre o Impacto das Ditaduras na Literatura da América Latina. Na hora de apresentar o trabalho, foi necessário que ela explicitasse seu conceito de ditadura. À medida que avançava na argumentação, a banca examinadora avançava na Yoani: "Você está querendo dizer que... de repente... bem, talvez... quem sabe... Cuba seja... uma ditadura?" Não... Sim... Quer dizer... Veja bem... A carreira acadêmica da Yoani terminou antes de começar. Yoani nasceu em Havana, filha de uma dona de casa e de um funcionário da companhia estatal de trens. Seus pais eram entusiastas da revolução, tanto que arrumaram para a Yoani esse nome com Y - e ensinaram para ela recitar um lema: "Eu sou uma pioneira do comunismo, nós seremos como Che". Faltou combinar com os russos. Quando veio o colapso da União Soviética, Cuba mergulhou em sua pior crise econômica. A família da Yoani ficou pobre. "Meus pais entregaram os melhores anos de suas vidas ao sonho da revolução, mas as coisas não saíram como eles imaginavam". Durante o "Período Especial" decretado por Fidel Castro, a população esteve privada de quase tudo, incluindo uma redução na ração diária a que todos os cubanos tinham direito. Yoani era uma adolescente privada de cremes, sabonete e xampu. Mas isso era o de menos. Em qualquer roda, o assunto dominante era sempre um: a falta de comida. Yoani estudava em uma escola rural. Na hora do almoço, suas colegas escondiam nas roupas de baixo o que sobrava das refeições. Mas isso acabou provocando uma infestação de ratos no dormitório. A Yoani, que tinha desejado ser o Che Guevara, tornou-se "uma cínica" - ela apenas fingia acreditar na conversa do Fidel. No tempo da faculdade, a Yoani conheceu o Reinaldo Escobar, um jornalista que tinha trabalhado na imprensa estatal, mas virara professor de espanhol para turistas estrangeiros. O Reinaldo, 30 anos mais velho do que ela, era um bom jornalista. Mas nos anos 80 decidiu escrever uma série de artigos críticos ao governo. Daí ele se tornou um bom ex-jornalista. A prova de que os iguais se atraem tanto quanto os opostos é que o Reinaldo se casou com a Yoani, eles tiveram um filho - hoje com 12 anos - e resolveram ir embora de Cuba em 2002. Com a permissão do governo, mudaram-se para a Suíça. Mas o Reinaldo, por causa da sua idade, não conseguiu trabalho de jeito nenhum. Então, navegando no contrafluxo, a nova família da Yoani decidiu voltar para Cuba dois anos depois. "Dentro de mim havia um entendimento de que eu voltaria, mas de maneira alguma aceitaria as coisas como elas são", disse Yoani em entrevista ao Wall Street Journal, em dezembro passado. "Eu vou tentar fazer alguma coisa." A coisa que a Yoani fez primeiro foi uma revista (Consenso), depois um portal na internet (www.desdecuba.com) e finalmente o seu blog, que estreou em abril do ano passado hospedado em um provedor na Alemanha. Não é fácil ser blogueiro em Cuba. Apesar de Raúl Castro ter liberado a venda de computadores pessoais, a conexão à internet permanece restrita às empresas estatais, aos hotéis de luxo e a uns poucos cybercafés que servem aos turistas (em Habana Vieja, apenas um). É por isso que cada vez mais a juventude se dedica com afinco a burlar as normas, estabelecendo conexões ilegais, penetrando nos grandes hotéis ou comprando login e senhas de funcionários do governo. Em geral, um jovem cubano não gasta tempo de conexão redigindo um texto. Ele faz isso em casa e, depois, através de um pente de memória, coloca na rede o que produziu off line, de forma rápida e segura. A prática, que economiza dinheiro e evita a fiscalização, criou um tipo muito particular de cubano: o traficante de pen drive. "Aos 76 anos, Raúl Castro não faz a menor idéia de quanta informação se pode transmitir de um computador a outro, e com que facilidade se pode fazer isso", diz Anthony DePalma. "É interessante verificar que a venda de computadores foi liberada, mas a fotocopiadora e o fax permanecem proibidos." Para fazer as atualizações do Generación Y, Yoani Sánchez redige em casa as crônicas e comentários que alimentam o site pelo menos duas vezes por semana. Seus textos são por vezes irônicos, por outras, diretos. "As últimas reflexões de Fidel Castro encheram a minha paciência", anotou, numa crítica a um artigo do ex-comandante publicado no jornal oficial Granma. Seus assuntos variam de um grafite no muro ao vinagre que é vendido em sacolas plásticas; do número crescente de cachorros da polícia na ruas de Havana à constatação de que, na sala de aula do seu filho, a professora elegeu um "informante" para ajudá-la a manter a disciplina. "Tão jovens", escreveu Yoani, "e essas crianças já vivem a experiência paralisante de estarem sendo observadas." Munida de seu pen drive, Yoani veste-se de turista para entrar nos hotéis de Havana e postar no blog as suas mensagens. Usa bermuda de surf, camiseta e alpargatas. Na portaria, cumprimenta o guarda em alemão. Ele se afasta, ela entra. Em poucos minutos, Yoani descarrega na internet o material contido no pente de memória. Em janeiro deste ano, o site alcançou 1 milhão de visitas às suas páginas. Em março, 4 milhões. São pessoas de todo o mundo, incluindo Cuba, onde o governo tenta bloqueá-lo quase sempre sem sucesso. A coragem de Yoani lhe valeu um dos maiores prêmios do jornalismo em língua espanhola, o Ortega y Gasset, concedido há 25 anos pelo jornal espanhol El País. Yoani foi premiada na categoria Jornalismo Digital - mas o governo cubano a impediu de receber o prêmio, entregue em Madri na quarta-feira passada. "Yoani tornou-se um grande problema para Raúl Castro porque ela não quer ir embora de Cuba, como a maioria dos jovens", diz o cientista político Mauricio Font, cubano-americano que dirige o Bildner Center for Western Hemisphere Studies, em Nova York. "Ela representa uma juventude que deseja ter voz e participação. O governo cubano não sabe como responder a essa demanda." O fato é que agora já foi: a Yoani ficou conhecida e importante demais para ser mandada para a prisão pela ditadura cubana, empenhada em parecer menos uma ditadura. Na última edição da revista Time dedicada aos "cem heróis e pioneiros de 2008", ela figura como a 31ª pessoa mais influente do ano em todo o mundo. Sobre isso, ela postou no blog a seguinte mensagem, datada do dia 3 de maio: Eu me dediquei a contar a minha realidade a partir do foco distorcido das emoções. Ousei a acreditar que a voz de um indivíduo pode empurrar os muros, opor-se aos slogans e desfazer os mitos. A vaidade só me alcança quando imagino as outras 99 pessoas listadas pela Time se perguntando: "Mas quem é esta bloqueira cubana que nos acompanha?" "Ela não é contra nem a favor de Fidel ou de Raúl", responde Anthony DePalma. "Ela é parte de uma juventude que não liga para isso. Eles são, na verdade, os pós-castristas. Depositam todos os seus desejos e esperanças no período que está por vir. E que agora eles sabem: virá."

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