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Nas crises, o impossível às vezes se torna inevitável

Acontecimentos das últimas semanas podem ser só o prelúdio, não o clímax, de uma situação assombrosa

Por Anatole Kaletsky
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O espantoso nas crises financeiras é como os acontecimentos podem avançar diretamente do impossível ao inevitável sem nem sequer passar pelo improvável.   Veja também: O capitalismo no espelho Go home, Chicago boys! Entre o touro e o bezerro Duas semanas atrás, ninguém teria imaginado que, antes de o mês terminar, a administração de George W. Bush teria nacionalizado a maior companhia de seguros do mundo, dois dos quatro maiores bancos de investimentos globais estariam acabados e o governo americano assumiria a responsabilidade por três quartos dos novos empréstimos hipotecários do país. Infelizmente, os acontecimentos das duas últimas semanas podem ser apenas o prelúdio, e não o clímax, dessa crise assombrosa. Até o aparente salvamento do Halifax Bank of Scotland (HBOS) pode resultar numa crise maior se ele arrastar seu salvador, o Lloyds TSB, para o fundo. Se isso acontecer, cada banco da Grã-Bretanha, com a possível exceção do HSBC, terá de ser nacionalizado, ao estilo do Northern Rock. O mesmo poderá se tornar inevitável nos Estados Unidos se os especuladores no mercado que foram ricamente premiados pelo governo por afundar Fannie Mae, Lehman Brothers e AIG virarem sua atenção para o próximo grupo de instituições financeiras claudicantes na linha de fogo: Washington Mutual, Wachovia, Bank of America, Morgan Stanley e Citibank. Se qualquer um desses gigantes feridos desabar, os outros cairão como peças de dominó e todo o sistema financeiro americano terá de ser nacionalizado. Numa crise financeira, o impossível pode se tornar inevitável em um dia, como se viu na Quarta-feira Negra na Grã-Bretanha. Mas a palavra operativa aqui é "pode". Para compreender o que ainda pode ser feito para impedir que essa crise se transforme num verdadeiro desastre é preciso olhar imparcialmente para as conseqüências inesperadas nos mercados das recentes ações do governo. Isso significa afastar-se dos slogans moralistas sobre "ganância" ou "salvamento de banqueiros irresponsáveis". A principal resposta a essa crise foi uma disputa furiosa sobre quem permitiu que os bancos entrassem nesse imbróglio e como se poderia acabar com a imprudência. Isso equivale ao debate acalorado entre políticos franceses, quando as divisões Panzer alemãs entravam em Paris, sobre quem tivera a estúpida idéia de construir a Linha Maginot. Haverá um momento para repartir culpas e infligir punições e reformar estruturas regulatórias. Agora, porém, a única questão é como evitar uma catástrofe nas próximas semanas. Está claro que a maioria das ações tomadas recentemente por autoridades reguladoras e governos exacerbaram a crise. Em vez de usar o poder de fogo financeiro ilimitado de seu governo para defender o sistema financeiro, o secretário do Tesouro, Henry Paulson, virou a arma contra seu próprio lado, liquidando investidores de longo prazo que tentavam escorar importantes instituições financeiras, enquanto premiava especuladores que tentavam derrubá-las. Paulson estava acionando uma Máquina do Juízo Final financeira, impelida por uma reação em cadeia de ações de especuladores no mercado acionário, agências reguladoras, agências de classificação de crédito e contadores. Os detalhes desse mecanismo são complexos, mas a idéia central é simples - se o preço da ação de um banco cai abaixo de um nível crítico, seu crédito é degradado; ele precisa vender ativos a preços de liquidação; isso enfraquece ainda mais seu capital, levando as autoridades reguladoras a questionar sua solvência; isso provoca uma queda no preço de suas ações e o círculo vicioso dá mais uma volta. O que Paulson fez há dez dias foi entregar aos especuladores no mercado acionário a chave dessa Máquina do Juízo Final. Isso pode parecer uma acusação exagerada - em especial contra um suposto gênio financeiro que já foi presidente do Goldman Sachs -, mas considere-se o acontecimento que desencadeou os ataques do mercado ao Lehman Brothers, AIG e HBOS. Eles se seguiram à decisão punitiva de Paulson, em 7 de setembro, de basicamente expropriar os U$ 20 bilhões de capital injetados na Fannie Mae e Freddie Mac por acionistas nos 12 meses anteriores. Os acionistas de longo prazo fizeram esses investimentos encorajados pelo governo americano, para estabilizar a Fannie e o Freddie. Enquanto isso, um bando de especuladores de curto prazo vendia os mesmos papéis, convencido de que as duas companhias seriam impelidas à concordata. Ao premiar os vendedores a descoberto eliminando investidores que acreditavam numa recuperação no longo prazo que restauraria a lucratividade das gigantes de hipotecas, Paulson enviou a mensagem mais clara possível aos mercados financeiros de todo o mundo. Todo investidor que puser dinheiro numa instituição financeira americana que possa ficar com falta de capital o verá ser expropriado pelo governo americano. Por outro lado, os vendedores de ações de bancos e companhias de seguro americanas seriam ricamente recompensados se pudessem desestabilizar qualquer companhia financeira o suficiente para forçá-la a recorrer à ajuda do governo. Nos dias recentes, o mesmo padrão de incentivos perversos foi repetido na concordata do Lehman e no "salvamento" do AIG. Em ambos os casos, Paulson decidiu liquidar os investidores que bancavam uma recuperação enquanto premiava vendedores a descoberto desestabilizadores. A questão chave é se essa estratégia de terra arrasada se tornará um princípio firme das respostas de Paulson a futuros ataques a instituições financeiras americanas. A opinião alternativa é que Paulson pode ter astutamente escolhido os acionistas de Fannie, Lehman e AIG como bodes expiatórios, para mostrar sua firmeza com "banqueiros gananciosos"- e tendo deixado isso claro, ele agora será capaz de sustentar instituições mais importantes como Bank of America e Citibank se elas forem atacadas. Os acontecimentos dos próximos dias revelarão se é astúcia ou incompetência a explicação para a estratégia aparentemente suicida de Paulson, mas, enquanto isso, o turbilhão financeiro deslocou-se de Nova York para Londres - e com ele, a responsabilidade por respostas políticas certas ou erradas. Enquanto escrevo, os termos da fusão Lloyds-HBOS são desconhecidos, mas o critério principal para julgar sua eficácia é bastante claro - e é exatamente o oposto do princípio adorado por Paulson. (O Lloyds TSB comprou o HBOS pelo equivalente a US$ 22 bilhões.) Se a fusão Lloyds-HBOS oferecer ao banco ampliado algum tipo de rede de segurança governamental firme - não apenas para depositantes, mas decisivamente também para acionistas -, ela provavelmente será bem-sucedida e agirá como um anteparo contra a crise financeira deste lado do Atlântico. Se, porém, a fusão for apresentada como uma "pura solução do setor privado", sem nenhum suporte do governo aos acionistas, ataques de mercado contra o HBOS serão rapidamente retomados e redirecionados contra o banco resultante da fusão. Isso deixará apenas uma solução - a nacionalização de todo o sistema bancário britânico. O impossível se tornará subitamente inevitável. * Anatole Kaletsky escreveu este artigo para o jornal britânico The Times, do qual é o principal comentarista econômico. É autor de Os Custos da Moratória (Paz e Terra)

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