Nasce um Estrella

Ele já foi um típico garoto carioca, um grande traficante do Rio e hoje é o músico João Guilherme

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Por Flavia Guerra
Atualização:

O nome dele não é Johnny. É João Guilherme Estrella. E a sina do sobrenome traçou para a vida desse carioca da gema uma trajetória meteórica. Hoje é o João Guilherme, produtor musical. O João Guilherme empresário de Ivo Meirelles, presidente da bateria da Mangueira, cujo morro ele sempre sobe para sambar na pista e tomar raras cervejas. Muito longe de ser um joão-ninguém, hoje ele é um "cara normal". Mas João já foi Johnny, "o maior vendedor de cocaína da Zona Sul carioca". Sua estrela esteve em franca ascendência e garantia "muito brilho" às festas estelares da elite carioca dos anos 80, quando a cocaína caiu na corrente sanguínea da cidade. E despencou na década seguinte. Digna de uma quasar, a estrela de João quase foi sugada por buracos negros astronômicos. Ele foi preso, processado por tráfico de drogas e se viu diante da ameaça de passar a vida na cadeia. "O poderoso traficante Johnny foi preso hoje pela Polícia Federal", diziam os telejornais em 25 de outubro de 1995. "Meu nome não é Johnny", limitou-se a bradar João na nova casa que havia ganhado: uma cela em que dividia o exíguo espaço com dezenas de outros "indivíduos perigosos". Como todo calibre grosso do tráfico que se preze, João tinha um apelido. Ou quase. A alcunha ele ganhou da imprensa. Material para as ficções cotidianas que precisam rechear os noticiários diários. O calibre nunca foi muito grosso. Nem de mérito. Nem de fato. Em poucos anos, mais com lábia que com força, ele tinha se tornado um ponto-chave de uma vertiginosa rede de tráfico. Era a bola da vez da Polícia Federal. Sua arma, contudo, eram seu carisma e sua lábia. Para ele, dar um tiro nunca havia significado mais que traçar a tradicional "carreira", aquela em que cartões de crédito se tornam espátulas para separar o pó branco em superfícies muito lisas. Nenhum tiro foi disparado. Mas João morreu naquele dia de outubro, quando o apartamento em Copacabana, onde ele e dois amigos preparavam seis quilos de cocaína que, mais uma vez, levaria para a Europa, foi invadido pela polícia. Era de se pensar que o destino que os astros haviam reservado para Estrella tivesse se cumprido. Mas a jornada estava apenas começando. Depois de meses na cadeia, condenado a passar dois anos no Manicômio Judiciário e muitos tempo depois de sua mãe descobrir qual era o trabalho do filho - ela só soube com a notícia da prisão, divulgada no Jornal Nacional,- o sobrenome Estrella nunca ecoou tão alto. Hoje basta ir a qualquer grande cadeia de cinema para se deparar com o trailer de Meu Nome não é Johnny, longa-metragem estrelado por Selton Mello e dirigido por Mauro Lima, que refaz a trajetória de João e é inspirado no livro homônimo que o jornalista Guilherme Fiúza lançou nos anos 90. "'Então, você é o famoso João Estrella?' Quando a Cleo Pires disse isso eu afundei na cadeira e parecia que o mundo estava olhando para mim", diz o dono da fama. "Fui ao cinema com minha mulher e não sabia que o trailer já estava sendo exibido. Muito menos que meu nome era mencionado em alto e bom som!" Escancarar sua trajetória e tirar a névoa que sempre paira sobre a história de qualquer ex-criminoso não foi e não é motivo de susto para João. Muito menos falar sem tomar precauções e checar se se está sendo politicamente correto a cada vírgula. O que tem de fato surpreendido esse ex-garoto de praia, que resolveu surfar por ondas mais sinuosas que as de Ipanema, é a reação dos jovens que eram crianças quando ele foi preso. Desde sua libertação em 1998, João já concedeu centenas de entrevistas, mas surpreende-se com um fato novo: nada de novo. Ou quase. "Vejo que hoje, depois de tanto tempo e tanto se falar de drogas, liberação e uso, na mídia, na TV, na escola, é ainda um assunto tabu, sim. Não no sentido do que não se fala. Mas não se fala com sinceridade. A grande maioria dos jovens ainda não encontra em casa uma posição que, em vez de julgar, oriente. O que não significa que não se deva impor limite." De limite, ele hoje entende. Como bem o diz o slogan do filme, João tinha tudo. Menos limite. E, até entender em que ponto se deve parar e traçar a fina linha vermelha entre o certo e o errado, rodou muito. "Na minha vida nunca teve muito o dentro e o fora da lei. As coisas foram acontecendo. Em um dos debates, um dos garotos ia fazer o jornal da escola. E ele, bem jornalista, perguntou: ?E a hipocrisia? Você curtiu pra caramba e agora vem dizer para a gente não fazer nada e ser santo!? Aquilo me baqueou. Caiu a ficha da responsabilidade que é falar com o adolescente." A franqueza surpreendeu João. "Os jovens não me julgam. Muito menos são condescendentes. Eles me tratam de igual para igual. Querem saber quem é o João e não o Johnny. Muitos me procuram depois dos debates para falar de suas dúvidas. Os na fase de 15, 16 têm mais curiosidade. É um rito de passagem, a primeira vez que se experimenta uma droga." A velha combinação fatídica do "jovem de família disfuncional que acaba se perdendo pelo caminho dos tóxicos" não se aplica a João. "Não tem nada disso. Tinha problemas como todos. Eu tive tudo. É claro que a primeira vez que acendi um baseado estava a fim de aventura, de transpor meus limites e de me integrar à minha turma", admite, deixando a hipocrisia em outra galáxia. De fato. De hipocrisia os olhares caridosos estão cheios. Como fugir do clichê de perguntar a um ex-vendedor de cocaína se ele é a favor ou não da liberação do uso e da venda de drogas? E se ele sabia, como diz um amigo no filme, "que não estava vendendo pulseirinha de crochê em centro acadêmico"? "Não considero séria esta discussão no Brasil. Não diria hoje que sou a favor ou contra. Mas não estamos preparados para isso. Não é só questão de liberar ou não. O tráfico de drogas virou uma questão social importante. Mas é ridículo culpar a classe média por isso. Se liberar, toda essa ?economia informal? vai para a rede formal de serviços. Como é que os grandes traficantes dos morros vão ganhar o que ganham hoje? Vão partir para ?outra atividade?. É preciso criar oportunidades nas favelas para que a comunidade não dependa do tráfico", diz. "Não é só questão de ser bandido ou não. Vejo os meninos da Mangueira. Como todo jovem, chegam a uma idade em que vão querer, sim, ter um tênis bacana. Como pagar isso? Vão ter trabalho? A grande maioria ou vai ser da bateria da escola ou vai entrar pro tráfico. Enquanto isso, toda hora também se vê jovem da classe média e média alta ser preso por tráfico. Só que de ecstasy, que hoje é a droga que não passa pela favela." Qualquer semelhança com jovens da classe média alta carioca que estamparam, há pouco, as páginas dos periódicos, não é mero destino. "No meu tempo, quem cheirava cocaína era rico. Hoje pobre também cheira. Rico cheira a boa. Pobre cheira a ruim. Droga de rico hoje é ecstasy. Nem celular existia. Mas o problema ainda é o mesmo." Celular, internet e o buraco negro social que o tráfico de drogas se tornou no Brasil não passavam perto das festinhas regadas a Nelore Puro, a "cocaína de grife" que João vendia para moças e rapazes de fino trato, que, assim como seu fornecedor, não eram freqüentadores das bocas em tantas favelas. Trazida do Mato Grosso, a cocaína com nome de gado (o negócio de fachada) era refinada em um dos maiores laboratórios da América do Sul, em Rondonópolis, a 400 quilômetros da fronteira com a Bolívia. Era repassada direto da fonte para João, que a vendia e distribuía com fartura para amigos. Vale citar o livro de Fiúza para entender sua filosofia. Em uma de suas idas à Europa, seu contato disse: "Meu objetivo é juntar um milhão de dólares". E João: "O meu é torrar um milhão". Foi essa falta de visão empresarial o seu maior defeito e sua tábua de salvação. Quando se viu diante da juíza Marilena Soares, que era osso duro de roer, usar a fraqueza como força de defesa foi mais que estratégico. Foi legítimo. João alegou ser dependente e consumidor da droga que vendia. Marilena viu em sua história mais que a trajetória de um bandido comum. "Ele é a prova viva de que é viável recuperar as pessoas. É o atestado de que nossa luta não é em vão", apostou ela. Apostou e ganhou. Mas o discurso "estava escrito nas estrelas" e entregar a responsabilidade a Zeus não se aplica. "Hoje, minha vida virou filme, e penso na volta que tive de dar para conseguir ser o que queria desde criança: músico." Era o preço a ser pago? " Passei o que tinha de passar. Claro que o apelo de lançar um disco do cara que já foi preso é grande. Mas meu maior prazer hoje é a normalidade." Hoje João se prepara para concluir, com a estréia do filme, em 4 de janeiro, sua maior operação: um CD. "O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que lançamos pela primeira vez um olhar inteligente sobre nós mesmos (...)", dizia o cartão enviado pela juíza Marilena no primeiro Natal que ele passou preso. Depois do colapso, nasce sempre uma supernova. Hoje, João Estrella, o músico, sabe disso. Nasceu no palco. E para brilhar. Em queda Sua estrela fez o "brilho" de muita festa da elite nos anos 80. Mas despencou nos 90 Trancado "Meu nome não é Johnny", ele se limitou a dizer na cela reservada aos "perigosos" Perdulário "A falta de visão empresarial foi seu maior defeito e sua tábua de salvação"

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