Netflix adapta livro sobre casal de viúvos

'Nossas Noites', último livro de Kent Haruf, aborda acordo entre septuagenários para superar solidão

PUBLICIDADE

Por João Prata
Atualização:
Jane Fonda e Robert Redford retomam parceria após quase quatro décadas Foto: Netflix

As manhãs dos últimos meses de vida de Kent Haruf foram de muito trabalho. Na edícula de sua casa, sentava-se diariamente à frente da máquina de escrever, tirava os óculos, colocava uma touca de meia na cabeça para cobrir os olhos e passava a digitar no teclado sem enxergar o que estava sendo reproduzido no papel. A escrita cega, segundo Haruf, foi a maneira encontrada para alcançar frescura e espontaneidade sem se distrair com a visão de palavras na página. O método, no entanto, não era inédito. Foi adotado por volta de 1984, quando iniciou o terceiro romance, Plainsong, seu primeiro best-seller, finalista do National Book Award. 

PUBLICIDADE

A diferença é que em sua mais recente obra havia pressa para terminar. Em 2014, Haruf sofria com um câncer no pulmão e sabia que não teria muito tempo de vida. Enquanto os outros romances tiveram uma média de cinco a seis anos para serem finalizados, em Nossas Noites, ele conseguiu terminar a obra em aproximadamente 45 dias. Depois, mais algumas semanas entre idas e vindas para o editor. Morreu em novembro, com 71 anos, dois dias antes de o livro ficar pronto. Nossas Noites foi dedicado à sua segunda e última esposa, Cathy Haruf e se passa, assim como os outros cinco romances, na fictícia Holt, no Colorado, uma mistura de três pequenas cidades onde Haruf passou a infância. Um local tranquilo, com gramados verdes se estendendo da calçada até as casas de dois andares, com um verão quente e seco e uma população sempre preocupada com a vida alheia. 

A história começa quando Addie Moore faz uma visita repentina à casa do vizinho Louis Waters. Os dois são viúvos, septuagenários, vivem sozinhos e pouco se conhecem. Ela sugere que, dali em diante, passem as noites juntos. “Não, sexo não. Não é essa a minha ideia. Acho que perdi todo e qualquer impulso sexual faz muito tempo. Estou falando de ter uma companhia para atravessar a noite, para esquentar a cama. De nós nos deitarmos na cama juntos e você ficar para passar a noite. As noites são a pior parte. Você não acha?”

A vizinhança fofoca, um conhecido de Louis tira sarro sobre ele conseguir ter pique de cortar toda a grama de sua casa após longas noites de amor. Logo os familiares tentarão meter a colher no relacionamento e levará o leitor a também ter a curiosidade de saber se em algum momento haverá sexo entre os novos amigos. Deitados na cama de mãos dadas, no quarto, com uma fresta na janela para entrar a brisa da noite, eles dão de ombros para os outros. Estão mais preocupados em se conhecer, relembrar histórias, se libertar de traumas e tentar fechar feridas jamais cicatrizadas, como a morte da filha de Addie quando tinha seis anos. Passam a lutar juntos pelo direito de ser feliz.

Sem recorrer a sentimentalismos ou clichês, Haruf usa de uma narrativa veloz, em que os diálogos entre o casal correm soltos, sempre amparados por belos cenários das planícies do centro-oeste dos Estados Unidos. Carrega também uma linguagem mais para o coloquial, inspirada em Hemingway e Faulkner, suas referências literárias. Mas a maior virtude, talvez, seja a sutileza e delicadeza com que trata a relação de amor e a necessidade de aproveitar segundas chances que a vida oferece. 

Não há como evitar comparações com a vida do próprio Haruf. Em ensaio para a revista literária Granta, ele conta que foi um jovem recluso, preocupado com o que os outros iriam dizer sobre uma cirurgia malfeita de lábio leporino. Vivia com a mão à frente da boca e só conseguiu se livrar desse trauma depois que deixou o bigode crescer e notou que ter se afastado dos outros serviu para observar melhor a sociedade. Também lutou contra a rejeição no meio literário no início da carreira. Acredita que só foi aceito na Iowa Writers’ Workshop por pena, pois, sem emprego, se mudou com a esposa e a filha para a cidade somente por causa do curso. Sua primeira obra foi publicada quando tinha 41 anos e escrevia havia mais de 20. Com a segunda mulher, conseguiu se libertar das amarras da vida, encontrou sua voz narrativa e passou a ter longas conversas deitado na cama, de mãos dadas com Cathy, com a fresta da janela aberta e a brisa da noite. 

A vida amorosa de Addie e Louis já virou filme, a ser lançado neste ano pela Netflix, dirigido por Ritesh Batra (The Lunchbox). Para viver os protagonistas, um dos casais mais conhecidos do cinema americano: Robert Redford e Jane Fonda, que voltam a fazer par após quase 40 anos. Eles estrelaram juntos obras como A Caçada Humana (1966), Descalços no Parque (1967) e O Cavaleiro Elétrico (1979). A adaptação de Nossas Noites foi feita por Scott Neustadter e Michael H. Weber (A Culpa É das Estrelas). No elenco, Judy Greer, Matthias Schoenaerts e Iain Armitage.

Publicidade

*João Prata é jornalista

Capa do livro 'Nossas Noites', de Kent Haruf Foto: Companhia das Letras

Nossas Noites Autor: Kent HarufTradução: Sonia MoreiraEditora: Companhia das Letras 160 páginas R$ 39,90

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.