Neurocientista que estuda psicopatas descobre que ele mesmo tem o distúrbio

James Fallon concedeu entrevista exclusiva ao 'Aliás'

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Por Felipe Cherubin
Atualização:

Mindhunter, a mais nova série da Netflix, que começou em outubro e já vai para a segunda temporada, devido ao grande sucesso, traz uma abordagem original sobre o comportamento dos serial killers. O neurocientista norte-americano James Fallon, um dos maiores especialistas na área, conversou com o Estado sobre mitos e verdades que cercam o mundo da psicopatia e como ele reagiu a chocante descoberta de ser ele mesmo um psicopata.

O neurocientista James Fallon, que descobriu ele próprio ter disposição à psicopatia 

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A série Mindhunter, criada por Joe Penhall, marca a volta do cineasta David Fincher (Seven) à plataforma de streaming Netflix depois do sucesso de House of Cards. Inspirada em livro homônimo escrito por John E. Douglas e Mark Olshaker (Ed. Intrínseca R$ 39,90), conta a história real do nascimento da psicologia criminal nos Estados Unidos na década de 70 e é protagonizada por dois agentes do FBI, Holden Ford e Bill Tench, que se unem a uma cientista, Wendy Carr – baseada na psicóloga e socióloga Ann Wolbert Burgess.

Desafiando a burocracia da agência, os dois agentes convencem seus superiores que tipos diferentes de crimes estavam ocorrendo. Eram crimes, aparentemente, sem causa específica, marcados por violência gratuita, perversão sexual e com uma estranha reincidência de padrão.

Nascia, então, ainda que de maneira precária, a Unidade de Ciência Comportamental do FBI. Os agentes Ford e Tench, por sua vez, e ao contrário de seus superiores, acreditavam que a psicologia poderia ser a chave para entender esses crimes que desafiavam a racionalidade vigente.

A partir dessa crença, eles começam a visitar presídios com o propósito de entrevistar esse tipo de assassinos. A empreitada se mostra bem-sucedida e os agentes começam a desvendar, paralelamente, alguns crimes em andamento, graças ao conhecimento obtido nas entrevistas. E, assim, foi estabelecido o conceito de ‘serial killer’, um tipo homicida que mata com frequência e segue um modus operandi próprio, como uma espécie de ‘assinatura’.

No entanto, a grande questão do seriado e, também, da maioria dos filmes e livros sobre assassinos em série, é o fato da constante existência de um agente que cria fortes laços afetivos com os assassinos, conseguindo até, estranhamente, entender a lógica perversa por trás dos crimes.

Em Mindhunter, esse papel fica por conta do agente Holden Ford, que, assim como os agentes Will Graham (Dragão Vermelho) e Clarice Starling (Silêncio dos Inocentes e Hannibal), da tetralogia Hannibal, de Thomas Harris, ao investigar assassinos psicopatas, acaba se envolvendo com eles de uma maneira atípica, criando uma tensão sutil no espectador, que, inevitavelmente, se pergunta: seriam esses personagens também psicopatas, no entanto úteis à sociedade?

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A resposta pode ser ‘sim’.

O neurocientista James Fallon, professor emérito da Universidade da Califórnia, descobriu, acidentalmente, enquanto pesquisava neuroimagens de famosos assassinos seriais, em meio a sua pesquisa sobre esquizofrenia e o mal de Alzheimer, em 2006, que a neuroimagem de uma das pessoas do grupo de controle, considerada normal, batia com o padrão encontrado em psicopatas. A neuroimagem em questão era a do cérebro do próprio Fallon.

Ao contar de forma descontraída para sua mãe sobre o ocorrido, ela não ficou surpresa. De fato, Fallon, quando criança, começou a apresentar um comportamento que chamou a atenção dos pais, que o orientaram da melhor forma possível. Se não bastasse, descobriu, também por sua mãe, da existência de pelo menos sete casos registrados de assassinos, todos da linhagem paterna, incluindo um ascendente de Fallon, que cometeu o primeiro matricídio na América colonial (1673) em Rhode Island, documentado no livro Killed Stangelly: The Death of Rebecca Cornell, de Elaine Crane.

Outro caso icônico que chocou os Estados Unidos foi o de Lizzie Borden (1860-1927) – curiosamente, prima de Fallon – acusada de assassinar o pai e a madrasta a machadadas. Assim, não havia mais dúvidas de uma herança maldita na família paterna de Fallon, que, paradoxalmente, mesclava uma grande incidência de assassinos, padres e freiras.

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Mas foi em uma conferência em Oslo (2010) que Fallon, questionado pelos cientistas da plateia do porquê falar de epigenética (estudo da interação dos genes). usando a neuroimagem de um cérebro que possuia um padrão familiar aos estudos da psicopatia, começou a levar sua psicopatia a sério, já que o cérebro em questão era o dele mesmo. Com tantas descobertas, em 2013 decidiu publicar sua história em The Psychopath Inside: A Neuroscientist’s Personal Journey into the Dark Side of The Brain.

O Dr. James Fallon se autodenomina um ‘psicopata pró-social’, que não se tornou um serial killer graças à infância feliz. Em entrevista exclusiva ao Aliás, ele fala um pouco sobre sua trajetória.

Você acha que um ambiente amoroso pode interromper o surgimento de uma violência transgeracional ou de um possível assassino em série? Sim. O principal gatilho para a psicopatia e outros distúrbios de personalidade, como o distúrbio de personalidade narcisista e o distúrbio de personalidade borderline, ocorrem pelo abandono ou traumas precoces entre o dia do nascimento até os primeiros anos de vida, entre 2 a 3 anos de idade. Assim, mesmo que alguém tenha os marcadores biológicos da psicopatia, como os padrões detectados em imagem cerebral e os alelos genéticos, a menos que sejam abandonados ou abusados no início, eles podem ter alguns dos traços da psicopatia, mas não ser clinicamente psicopatas. Mas eles, talvez, serão extremamente competitivos, agressivos, extrovertidos e manipuladores.

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O que são os ‘psicopatas pró-sociais’? Os psicopatas pró-sociais são os tipos que podem trafegar perfeitamente pela sociedade sem serem pegos ou notados. Normalmente, eles não matam, não roubam, não estupram, mas estão sempre manipulando pessoas por pura diversão. Portanto, eles podem infernizar a vida das pessoas durante anos sem ser pegos. Existem os psicopatas primários, e há os psicopatas secundários, também conhecidos como ‘sociopatas’. Ambos podem realizar os mesmos comportamentos, contudo, por diferentes razões neurológicas. Os psicopatas primários não raciocinam através de uma consciência moral e nem sentem remorso. Os sociopatas, por outro lado, sabem que o que estão fazendo é errado e podem sentir remorso. Esses dois tipos ainda podem ser divididos em destemperados e carismáticos. Os destemperados são facilmente guiados pela ira e possuem impulsos sexuais muito acima do normal. Os carismáticos são, muitas vezes, bem-apessoados, charmosos e grandes manipuladores na arte de convencer as pessoas a fazerem o que elas normalmente não fariam. Portanto, o psicopata primário, que também é carismático, é o verdadeiro ‘campeão’ se pensarmos em psicopatas pró-sociais. Historicamente, o melhor exemplo é Casanova. Já nos tempos modernos, Bill Clinton é alguém que apresenta essas características, embora não seja um psicopata clinicamente diagnosticado.

Quais são as melhores caracterizações de psicopatas em filmes e quais os erros mais frequentes?  A maioria dos roteiristas tenta colocar traços psicológicos conflitantes em seus personagens, especialmente antagonistas perigosos. Isso se deve, em parte, ao curto período permitido para fazer um filme e, em parte, porque os roteiristas são um tanto preguiçosos e não se aprofundam em suas pesquisas sobre os aspectos psiquiátricos de pessoas reais. Por exemplo, eles tentarão fazer um psicopata expressar momentos de bondade cheios de empatia emocional. Tal pessoa, por definição, não pode ser um psicopata. Os espectadores muitas vezes querem ver o bom menino escondido dentro de um mau menino. Esta é uma idéia romântica que não está presente em psicopatas reais. Um exemplo de uma série de TV bem produzida e interessante foi Breaking Bad. Outros exemplos de produções com personagens psicologicamente bem construídos são Sopranos, Boardwalk Empire e O Lobo de Wall Street. Participei, recentemente, de um painel no Festival Tribeca, com Bryan Cranston e Terrence Winter, onde discutimos os problemas na caracterização cinematográfica de psicopatas e personagens com transtornos de personalidade.

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No que consiste sua teoria do banco tripé (three-legged stool theory)? Eu descobri por meio da minha própria tomografia por emissão de pósitrons, que meu cérebro era idêntico aos dos psicopatas que eu estava estudando e que tenho todos os marcadores genéticos consistentes à psicopatia, como agressividade, baixa ansiedade, grande tolerância à dor e baixa empatia emocional. Assim, os dois componentes da psicopatia estavam presentes em mim, embora eu estivesse convencido de ser uma pessoa completamente normal e não um psicopata. Foi aí que, observando minha mãe sentada em um banquinho de três pernas podando as flores do quintal, percebi, então, que ela, provavelmente, foi o fator determinante para a vida ‘normal’ que levo, já que cresci em uma família numerosa, em um ambiente amoroso e, esse fator ambiental, era oposto a todos os psicopatas que eu estudava, mesmo compartilhando com eles o cérebro e a genética.

O conceito de ‘empatia’ é muitas vezes confundido. A empatia não é ‘sentir pelo outro, mas sentir com o outro’ e é esse ‘com o outro’ (cognição quente) que a psicopatia é desprovida. Esclarecendo isso, você diz que psicopatas possuem uma capacidade enorme de ‘sentir pelo outro’ (cognição fria), sabendo o que as pessoas estão sentindo e pensando. Desta maneira, poderíamos dizer que existem dois tipos de consciência, uma ética e outra estética? Sim, pelo menos para mim. Sou agnóstico e libertário e o ‘conceito de bondade’, no meu caso, é natural, no sentido de que a arte e a estética são naturais, ou seja, vejo a bondade como um conceito de apreciação estética do belo. Portanto, a única razão para agir ‘bem’, é baseada na tentativa de agir naturalmente e belamente de uma forma estética, como se a vida fosse uma obra de arte.

Do ponto de vista evolutivo, qual seria o papel de um psicopata na preservação da espécie?  Do ponto de vista familiar e das relações sociais mais próximas, a existência de um psicopata é uma péssima notícia, mas do ponto de vista das espécies, os psicopatas são valiosos. Por serem predadores natos, acabam sendo aqueles que lideram o grupo ao escalar uma montanha, por exemplo, misturando uma espécie de coragem, que pode ser vista tanto para superar obstáculos como para matar indiscriminadamente. Essa liderança acaba por atrair muitas fêmeas que buscam um parceiro protetor, o que acaba em certa promiscuidade, misturando muitos genes que tendem a tornar as espécies mais fortes. No entanto, tudo é uma questão de contexto: O que é bom para a família talvez seja ruim para as espécies e vice-versa.

Pesquisas apontam, e você confirma em suas pesquisas, que o ‘equilíbrio emocional’ ou ‘maturidade cerebral’ ocorre entre 25-26 anos. Qual o impacto disso em políticas públicas? Isso traz muitas discussões de importância social na política pública, que são impactados pelo nosso conhecimento de que o primeiro ponto real de maturação e equilíbrio do desenvolvimento do cérebro humano, isto é, quando os circuitos cerebrais ‘cognitivo-intelectuais’ que chamamos de frios (razão) estão em equilíbrio com os circuitos cerebrais ‘cognitivos-emocionais’ quentes (emoção), ocorre, na maioria das pessoas, aos 25 anos de idade. Esse conhecimento nos leva à conclusão de que aos 18, 19 e 20 anos, ainda estamos lidando com ‘cérebros adolescentes’, que não estão maduros o suficiente para servir o exército, lutar em guerras, exercer certos tipos de trabalho e, não obstante, exercer sua cidadania pelo voto. Sempre haverá gente que dirá “ok, isso é verdade e óbvio”, mas essas mesmas pessoas não deveriam ter permissão para votar até seus 25 anos de idade.

Sabemos que ideias têm consequências e que psicopatas podem criar ideologias que acabam em mortes e caos, além de servir como doutrinação política. É possível identificar as ‘raízes do mal’ nas ideologias e evitar grandes catástrofes? Este ano eu dei uma série de palestras em Londres sobre guerra e terrorismo. Em um dos painéis do evento, tive uma conversa com o ex-líder do grupo jihadista no Reino Unido e apresentei o que acredito ser a base genética, neurocientífica e epigenética tanto da tirania quanto do terrorismo. Incluí, também, a análise da narrativa criada pelo filósofo Joseph de Maistre (1753-1821) – que foi membro do Senado de Saboia (atualmente território francês) e, mais tarde, embaixador em São Petersburgo – que forneceu as bases filosóficas e os instrumentos racionais para ideologias tirânicas posteriores, incluindo o nazismo, o estalinismo e o terrorismo religioso fundamentalista.

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Seu amigo e parceiro de pesquisas, Fabio Macciardi, trabalhando com geneticistas e psiquiatras, descobriu que marcas epigenéticas no córtex podem ser revertidas. Qual seria o impacto disso no futuro? O grupo do Fabio foi o primeiro a mostrar que, com a combinação correta de manipuladores genéticos no córtex, pode-se reverter marcas epigenéticas em conexões neuronais. Isso sugere que pessoas com estas alterações têm a esperança de que lesões cerebrais possam ser revertidas.

Da Bíblia a Shakespeare, o tema da vingança é recorrente. Todos os sistemas legais atuam de forma a sublimar a violência. É nesse sentido que o seu colega Dr. Steven Pinker, em Os Anjos Bons da Nossa Natureza, diz que a violência diminuiu ao longo da história? O que você pensa sobre isso? Steve Pinker produziu, junto com um verdadeiro exército de estudantes, uma massa enorme de dados que mostram que, quantitativamente, a taxa real de mortes diminuiu ao longo da evolução humana. Embora pareça um estudo contra intuitivo, uma vez que a mídia nos mostra diariamente casos de violência em todos os lugares do mundo, os números de Pinker são bastante convincentes. Há sim muita violência, mas é surpreendente perceber que, no passado, era muito pior. Além disso, a incidência de pragas e da falta de alimentos era constante, ao ponto de exterminar de 30 a 40% de uma população. Outro dado é que, apesar do que a mídia diz sobre o aquecimento global e coisas do gênero, estamos vivendo, na realidade, uma era de estabilidade climática, o que não acontecia no passado, quando catástrofes naturais eram recorrentes. Há apenas 50 mil anos atrás, precisamos lembrar, a raça humana quase foi extinta devido às mudanças climáticas. Em suma, parece que estamos vivendo uma era mágica e maravilhosamente benigna.

A sua pesquisa como neurocientista sobre os efeitos dos genes, do ambiente e das nossas experiências pessoais, trata de uma antiga questão e, voltando à tradição, você diz que, nesse ponto, Platão estava certo e Aristóteles errado. Por quê? Ao longo da história houve um grupo de filósofos e cientistas que acreditavam que aquilo que somos é determinado pelo ambiente e suas instituições, como, por exemplo, o governo, a sociedade, a igreja etc. Essa ideia tem origem em Aristóteles e continua nos filósofos estoicos, Rousseau, Locke e cientistas como Avicena e Freud e, na maioria dos cientistas sociais e no campo da biologia do pós-segunda guerra mundial (como uma reação ao genocídio nazista). Platão, e mais tarde Hobbes e Leibniz, por outro lado, acreditavam que nascemos com o que podemos chamar hoje de ‘memória genética do passado’, ou seja, já nascemos com um circuito neuronal que já “sabe” do que se trata o bom (Ética), o belo (Estética) e o verdadeiro. Sabemos disso, especialmente, pelas descobertas provenientes do trabalho árduo dos neurocientistas nos últimos 5-10 anos. Platão estava correto, a noção de ‘tábula rasa’ é uma ilusão.

Por que você escolheu trabalhar com o Conselho de Artes e Cultura do Vaticano? Eu participo de muitas reuniões da Google. Em uma delas, chamada Google Camp, ocorrida na região da Sicília, na Itália, conheci pessoas que trabalhavam com o Vaticano. Posteriormente, fui convidado a me juntar ao grupo que auxilia o Papa em sua pregação para levar sua mensagem de ternura aos quatro cantos do mundo. Podemos entender a mensagem do Papa como diferentes formas de empatia, como, por exemplo, a empatia emocional versus a empatia cognitiva, a empatia individual versus a empatia coletiva e, assim, vamos auxiliando, por meio da cultura e de novas tecnologias, para que a ternura se espalhe inteligentemente, a fim de alcançarmos um mundo mais amoroso.

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