'Newton' narra vida de blogueiro ameaçado por expor suas opiniões

Luís Francisco Carvalho Filho cria tribunal para julgar um homem comum que questiona o sistema

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Por Dirce Waltrick do Amarante
Atualização:

Newton, do advogado criminalista Luís Francisco Carvalho Filho, é um livro sobre um imbróglio jurídico envolvendo um escritor, cujo nome dá título à narrativa. Num primeiro momento, seu crime foi ter escrito um texto ficcional em que faz certas afirmações incômodas, uma delas a respeito do extermínio de animais domésticos sem coleira de “identificação fornecida pela prefeitura”. Em sua defesa, Newton alega que seu “blog navega entre ficção e realidade. É um personagem quem diz. Eu não digo nada”.  Só essa afirmação já daria ensejo a uma série de debates que vai da separação entre ficção e realidade aos limites éticos dos textos ficcionais. O escritor é processado por um grupo de pessoas, mas não tem como se defender, pois ele mesmo não tem documentos ou, diria, uma “coleira de identificação”.

No romance, o protagonista se vê em um tribunal onde todos os olhos estão apontados para ele Foto: PxHere

Em Newton, uma série de paradoxos é levantada. As mesmas pessoas que defendem os animais, por exemplo, comem todos os tipos de bicho. Mas quem não come bicho é por si só inocente? Newton lembra que “Hitler era vegetariano”. O fato é que as pessoas que são contra coleira obrigatória nos animais querem obrigar o protagonista a ter documentação para que ele seja devidamente identificado, ou terá o mesmo fim dos animais de sua ficção.  Vai-se criando uma atmosfera kafkiana, semelhante à do livro O Processo, de Franz Kafka. Diferentemente de K, personagem do escritor checo, Newton sabe por que está sendo processado, mas, tal como K, ele também está perdido em meio à burocracia jurídica sem sentido, que precisa enfrentar ainda que nunca tenha infringido nenhuma lei nem sonegado impostos, como faz questão de registrar. 

Vai-se criando uma atmosfera kafkiana, semelhante à do livro O Processo, de Franz Kafka

Outros, ele enfatiza, cometem crimes, são identificados oficialmente e mesmo assim permanecem soltos. Num diálogo absurdo, o delegado diz a Newton que o “problema é o anonimato. É inconstitucional”. O escritor rebate: “Mas que anonimato? Estou aqui, em carne e osso. Diante do senhor. Anonimato é ocultação. Eu não me escondo. Estou aqui”.  Já a um crítico literário, o escritor desabafa: “Quero mostrar a perseguição, o labirinto burocrático em que eu me meti. Só por ser diferente, sem vida burocrática. É o meu jeito de me defender. Uma pessoa perseguida por pensamentos que externou. Não é grave? Ou eu sou paranoico?”. Newton recebe dele o seguinte conselho: “Não se ataca todos ao mesmo tempo”. Os críticos sabem bem disso.  Seu editor parece estar mais preocupado com a venda dos livros do que com o processo movido contra o seu autor: “E tem escritor que não fala mesmo nunca. E vende. Não tem problema. Você provou para nós. Nunca fez lançamento, um bicho do mato”. Nesse “labirinto burocrático” e nonsense, Newton, um homem extremamente normal, precisa de terceiros que atestem sua saúde mental e sua existência. Ao analista, ele reitera: “Eu busco as crianças. Vou ao cinema. Vejo televisão. Como pizza. Trabalho. Eu só não tenho documento. É diabólico, não basta existir, tenho que provar que existo, e agora que sou são”. 

O escritor e advogado Luís Francisco Carvalho filho, autor de 'Newton' Foto: Reprodução/Twitter

O gênero dramático, escolhido por Carvalho Filho para contar a história de Newton, parece bastante apropriado, pois tem-se a impressão de que se está num tribunal do júri, visto como uma encenação teatral, ou diante de um longo interrogatório, do qual participam não só o promotor, a juíza e o delegado, mas outros convivas da personagem central. Além da mulher e dos filhos, ninguém o entende; um professor, provavelmente de Direito, o compara ao enigmático Kaspar Hauser, cidadão alemão do início do século 19, que certo dia apareceu circulando pela praça de uma cidade apenas com uma carta na mão. Kaspar Hauser foi de certa forma “domesticado” pela sociedade da época; Newton, ao contrário, não se deixa domesticar, não busca sua origem, não está preocupado com nada além de sua escrita. No romance, as discussões levantadas não são solucionadas por Carvalho Filho, que deixa que o leitor tire suas próprias conclusões, como se esse, finalmente, pudesse interpretar preceitos jurídicos que regem também a sua vida. Vale citar aqui novamente Kafka, que, num conto intitulado Sobre a Questão das Leis”, conclui que nossas leis só não são “segredos” para um “pequeno grupo de nobres que nos domina” e participa de sua interpretação. Afinal, “as leis foram desde o início assentadas para os nobres, a nobreza está fora da lei e precisamente por isso a lei parece ter sido posta com exclusividade nas mãos da nobreza”. Disso sabemos bem.

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