No Dia dos Namorados, floricultura traz a história de um amor não perecível

No Largo do Arouche, no centro de São Paulo, floricultura República Flores nos conta ahistória de um amor não perecível

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Por Gilberto Amendola
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  Foto: GABRIELA BILO | ESTADAO CONTEUDO

Gilberto Amendola

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Engarrafar a existência em uma perspectiva mais ou menos calculável de tempo é uma necessidade humana. Sem o ‘apoio’ das horas, dias, meses e anos, estaríamos entregues ao aleatório, ao caos. Essa necessidade tem sua mais ligeira (e quiçá perfeita) tradução na expressão ‘vida útil’. Percebam, tudo o que se mexe (ou não se mexe) acaba sendo enquadrado na tal regra da ‘vida útil’. O computador em que está reportagem esta sendo escrita tem uma ‘vida útil’; se você estiver lendo em um aparelho de celular saiba que ele também tem uma ‘vida útil’; essa própria matéria jornalística, por princípio, tem uma ‘vida útil’. Quanto mais perecível for, mais curta será a ‘vida útil’ do que quer que seja. Então, chegamos ao ponto dessa história, uma história de Dia dos Namorados, uma história sobre uma das coisas mais perecíveis que se tem notícia: o amor. Não, não, o amor ainda dura mais um tanto. A coisa perecível sobre a qual vamos tratar não é nada mais do que uma flor. Ou várias delas.

O Mercado das Flores, no Largo do Arouche, no centro de São Paulo, tem uma floricultura quase centenária, a República Flores. No início da última semana, seu proprietário, João Fernando Salgado Filho, 58 anos, tentava negociar um fusquinha vermelho, fabricado em 1965, uma joia familiar. “Nos anos 60, minha mãe usava esse fusca para fazer algumas entregas. Desde aquela época, entregar flores em São Paulo era uma questão complicada. Trabalhamos com um produto perecível, um produto que sofre muito no transporte, no trânsito, com a poluição e outros fatores. A vida útil de uma flor é relativamente curta...”, comenta Salgado. Como se vê, o comércio das flores é uma corrida contra o tempo.

Vamos, então, esticar a ‘vida útil’ das flores e retroceder ao pós-guerra, à Europa mergulhada na crise, e pousar, especificamente, em Portugal. Na ocasião, João Fernando Salgado (o pai) deixava a carreira militar e se via perdido em meio à vida civil. Sem emprego ou perspectivas, decide enfrentar 40 dias de navio e tentar a sorte no Brasil. Por aqui, transformou-se em mascate e jardineiro. Como mascate, vivia de um lado para o outro revendendo, com uma pequena margem de lucro, o que havia comprado por um preço mais em conta. Já no papel de jardineiro, a situação era ainda mais precária. Salgado cuidava do jardim de uma escola em troca de três refeições e uma cama para dormir.

No começo dos anos 30, com o País vivendo os reflexos da Depressão econômica, Salgado sobrevivia com pouco, mas, tendo uma Guerra Mundial como referência, virava-se com galhardia. Suas andanças como mascate e a experiência no ramo de jardinagem o aproximaram de Amélia, uma ‘violeteira’ (vendedora de violetas) que viria a ser sua primeira esposa.

O interesse por flores aproximou Salgado e Amélia, que terminaram se casando e conseguido uma concessão da Prefeitura para vender flores na Praça da República, na frente do Colégio Caetano de Campos. Apesar da crise, o casal pegou um momento áureo da Cidade – em que modernistas como Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral circulavam pela região e, eventualmente, tornavam-se clientes da floricultura. Anos depois, a Prefeitura remanejaria o chamado Mercado das Flores (e a República Flores) para o Largo do Arouche (onde está até hoje).

O casal teve três filhas e tudo parecia correr em perfeita ordem até que um tumor no cérebro levou Amélia – deixando Salgado com as meninas. O cotidiano de uma floricultura exige dedicação total (compras são feitas de madrugada e etc. e tal). Por isso, Salgado precisava do apoio de uma governanta. Os amigos indicaram uma conterrânea, uma portuguesa recém-chegado ao País, uma outra Amélia. Sim, a governanta tinha o mesmo nome da falecida esposa.

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Depois de alguns anos, Salgado casou-se com sua segunda Amélia. Com ela, teve o tão sonhado filho homem. João Fernando Salgado Filho lembra de uma infância no Largo do Arouche, empinando pipas na praça e vendo os pais correrem para cima e para baixo com as perecíveis flores. Ao chegar na idade de escolher uma profissão, apressou-se em sentenciar: a floricultura não!

Quando pensava em uma profissão, Salgado Filho vislumbrava uma carreira como Engenheiro Aeronáutico. No final do colegial, ameaçou entrar na Aeronáutica – mas foi desencorajado pelo pai que havia sido militar e não desejava o mesmo tipo de vida para o filho. “Então, ele me convenceu pagando o meu brevê (documento necessário para quem pretende pilotar aviões).”

Salgado Filho fez aulas teóricas e começou a acumular horas de voo – como era uma atividade muito cara, procurou uma Cia. Aérea da época, a Cruzeiro, para tentar atuar como copiloto na rota Manaus-Rio Branco. “Quando fui pedir o trabalho, conversei com um comandante muito sui generis, muito louco...” O comandante em questão convidou Salgado Filho para um chope e jogou a real: “Trabalhando nessa rota, já tive malária, quatro vezes. Conheci traficantes e contrabandistas, gente que me ofereceu dinheiro para voar com a mercadoria deles. Assim como eu, você também iria aceitar. Iria aceitar porque é muito dinheiro e porque, se você não aceitar, você está morto. Assim, você fecha um pacto com o diabo...”

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A didática do comandante fez com que ele desistisse da profissão e entrasse em uma faculdade de Economia – que levou à uma vida tediosa em uma instituição bancária. Já casado com Miriam, só voltou a cogitar uma volta à floricultura quando o pai ficou doente.

Foi como um chamado, uma ficha que caiu – quando se deu conta, já estava repetindo a rotina do pai, correndo contra o tempo, lutando contra o destino das coisas perecíveis, esticando a ‘vida útil’ das flores e da própria floricultura. Nesse Dia dos Namorados, Salgado Filho deseja vender rosas que subvertam o famoso verso de Gertrude Stein, aquele em que “uma rosa é uma rosa é uma rosa”.