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No olho do furacão

Como os profissionais de segurança, os operadores vivem no estresse

Por Monica Manir
Atualização:

O eletrocardiograma da BM&FBovespa oscilava em torno dos 35 mil pontos quando se ouviu um estampido. Alguns operadores não identificaram bem o ruído, mesmo porque 100% de audição é exceção entre eles. Outros cogitaram que fosse uma bomba de São João. Outros, talvez escaldados por tiros cinematográficos em Columbine ou Illinois, apostaram em um disparo vindo do aquário, mezanino envidraçado com vista para o pregão. O som era mesmo de uma arma, mas partira do próprio coração da bolsa. Encostado na roda de negociação do antigo DI (Depósito Interbancário), o operador Paulo Sérgio Silva, da corretora Itaú, atirava contra o peito usando uma pistola .380, sacada do paletó tamanho G. Fez-se uma segunda roda em torno de Paulinho, rapidamente invadida pela equipe do ambulatório. O operador foi levado para a Santa Casa de Misericórdia via Samu. A bolsa ofegou por alguns minutos. Logo voltou a operar. Paulo Sérgio, o Paulinho, foi encaminhado para o Hospital Santa Isabel, braço da Santa Casa que presta atendimento a conveniados e particulares. Passou por uma cirurgia de mais de cinco horas para retirada da bala e até o fechamento desta edição seu estado era grave, porém estável, como informou a assessoria do hospital. O que levaria um profissional com 15 anos de bolsa a praticar esse ato na principal arena financeira do País, e durante o expediente, é impossível afirmar com certeza. Mas o caso deflagrou uma discussão que estava em estado letárgico: o estresse a que se submetem os operadores de viva-voz, função extinta na Bovespa e ainda resistente na BM&F. "Não temos pesquisa conclusiva sobre isso, porém sabemos que a depressão e a síndrome do pânico afetam vários desses funcionários, assim como a perda de audição, que já foi constatada por profissionais da saúde", afirma Márcio Myeza, presidente do Sindicato dos Trabalhadores do Mercado de Capitais do Estado de São Paulo. Portaria do Ministério da Saúde estipula como som saudável aquele que não ultrapassa os 85 decibéis. No pregão, a média é de 96. Por isso o sindicato entrou com ação para que a categoria consiga o índice de insalubridade, que permitiria aposentadoria por esse critério. Márcio solta o gogó na bolsa há 20 anos e diz já ter tido crise de ansiedade. Também representante do sindicato, Hugo Nunes Santos, 28 anos de mercado, vira a cabeça de lado, como se estivesse segurando entre a orelha e o ombro o telefone bicolor usado nas transações. Insiste numa saúde boa, mas faz isso calibrando o tom de voz. Sabe que fala alto. José Carlos da Silva, 27 anos no viva-voz, se diz "normal", lembrando que havia mais "normais" na bolsa quando o pregão era feito na parte de cima do prédio: "O espaço era menor e conviviam ali até mil pessoas, só que ninguém falava de depressão nem de pânico". José Carlos, o Zé, se refere aos tempos em que o pregão da BM&F funcionava no Palacete Martinico Prado, na esquina da Praça Antônio Prado com a Rua João Brícola. Na época, a fachada foi mantida; o interior, totalmente demolido. A sustentação dessa embalagem ficou a cabo de amarras metálicas e macacos hidráulicos. Quando ela ameaçou cair, concretaram a base com macaco e tudo. O primeiro pregão, enfim, seria aberto às visitas em 6 de janeiro de 1986, com o edifício ainda em obras. Muito suor e muitos pés de sapatos foram perdidos no sufoco das negociações até que, dez anos depois, a bolsa adquiriu o prédio vizinho e dele também arrancou o miolo. O pregão ganhou mais espaço e profundidade: ficou três andares abaixo do nível da calçada, o que, para o sindicato, não foi de todo favorável porque os operadores perderam a vista da rua e os banheiros próximos. Ganharam, em contrapartida, rodas, poços ou pits de negociação semelhantes aos da Bolsa de Chicago, além de painéis multicoloridos e alucinantes para acompanhar as cotações. Em Chicago e Nova York os gritos sobreviveram. Em São Paulo, o único pit na ativa é o do Índice Bovespa, que funciona na BM&F. A assessoria da BM&F afirma que todas as negociações estão tanto na plataforma eletrônica como no viva-voz. Quem define a permanência ou a extinção do segundo formato é o mercado. Noves fora, o fato é que a BM&F começou com 1.200 operadores em 1986 e hoje são 300. Uma foto histórica do bilionésimo contrato, fechado em 2001, mostra o hall da bolsa assoberbado de gente, visão antagônica aos atuais poços quase vazios da BM&F. Em 3 de outubro de 2005, a Bovespa já encerrara os enfáticos gestuais de compra e venda, dando vez à eletronificação do sistema operacional e a um processo também enfático de demissões. Os remanescentes do viva-voz têm em média 35 anos e formação mediana de segundo grau. Por causa das crises asiática e russa, no fim dos anos 90, explica o presidente do sindicato, quem tentou cursar uma faculdade na época teve de abandoná-la devido ao esgotamento físico e mental. Abdicaram do estudo para manter a boa remuneração na bolsa. Acabaram perdendo o pé da história. "O pregão se habituou a ficar apenas no pregão", assume Hugo. Ele afirma que a migração para a mesa (eletrônica) exige um tempo de qualificação, e os operadores querem essa oportunidade. Para Ana Maria Rossi, presidente do flanco brasileiro da International Stress Management Association (Isma-BR), os operadores de bolsa, assim como os profissionais de segurança pública e privada, os motoristas de ônibus urbano, os controladores de vôo, os operadores de telemarketing e os médicos de pronto-socorro estão em ocupações ranqueadas entre as mais sujeitas ao burnout, pico máximo de estresse. "São profissões em que o apelo ao álcool e às drogas é conhecido, assim como a compulsão para comer e pelo tabaco", completa Ana Maria. Ela explica que a falta de controle sobre o próprio trabalho também ajuda a alcançar esse indesejável Everest. "Lidar com as cobranças do cliente em relação a ações, um produto cujo preço flutua, traz uma ansiedade monumental." Junte-se a isso a insegurança de quem só fez isso na vida para que o operador de viva-voz se sinta como um torneiro mecânico da velha guarda diante de um balcão de anúncios atual. Na tentativa de aliviar a tensão constante, Ana Maria sugere um bom networking, ou seja, uma dinâmica produtiva com os demais. A falta dele pode levar a outra expressão em inglês, o bullying, quando o coleguismo dá lugar à chacota, com apelidos e piadas sarcásticas, que mais isolam que ajudam. Os engraxates que lustram os mocassins nos quiosques defronte à BM&F conhecem os operadores exatamente como são chamados indoor: pelo apelido. E arriscam, após uma lustrada no próprio ego, que naquele mundo o pessoal se acaba de tanto estresse. Talvez nunca tenham atendido clientes com o espírito crítico de John Rockfeller (ou Joe Kennedy, ao gosto do freguês). Consta que, em 1929, um ou outro, após ver seu engraxate dar algumas dicas de ações, disse que ia vender as suas, explicando: "Quando até os engraxates estão fazendo dinheiro com a bolsa, é um sinal de que o mercado está ficando sem cabeça".

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