No país do dossiê instantâneo

A cada escândalo em formação o governo ameaça liberar dados

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Por Marco Antonio Villa
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A crise dos cartões corporativos repete outras tantas dos tempos recentes. A divulgação dos atos danosos ao tesouro público, mais uma vez, coube à imprensa. A oposição parlamentar não conseguiu desde 2003 criar fatos políticos. Desnorteada, sempre parece estar "correndo atrás do prejuízo", do prejuízo político. Daí que não causa estranheza o resultado da última pesquisa sobre a popularidade do governo e do presidente Lula. Desde a eleição de 2006 que não param de crescer os índices positivos, parte por mérito do próprio presidente, parte, principalmente, pela ausência de uma oposição combativa, propositiva e vigilante. Quando no auge da crise do mensalão, a oposição optou por manter o presidente Lula "nas cordas" para nocauteá-lo nas urnas, um ano depois - estratégia que redundou em um enorme fracasso e até hoje não mereceu nenhuma autocrítica dos seus propositores -, acabou criando uma espécie de jurisprudência sobre corrupção. A imprensa pesquisa e divulga o escândalo, o governo nega, o presidente diz que nunca soube do fato e a oposição propõe uma CPI. Durante alguns dias o assunto é o principal tema político. O Palácio do Planalto inicia um processo de desgaste da oposição insinuando que no passado aquilo já tinha ocorrido, notícias são plantadas na imprensa acusando alguns políticos oposicionistas e a conclusão do processo é a divulgação de algum documento, na maioria das vezes, o vazamento proposital de um dossiê. Pouco tempo depois o assunto cai no esquecimento. Nada foi efetivamente apurado e ninguém, por sua vez, foi punido. E ficamos aguardando o novo escândalo (que virá, inevitavelmente, dado o modus operandi do governo). Se o Brasil, um dia, foi o país do futuro, hoje é o país dos dossiês. A cada escândalo o governo responde com um. Quando o parlamentar passa a incomodar o governo com suas críticas, logo entra em ação o eficiente departamento dos dossiês. A resposta governamental nunca é no campo da política, no espaço do debate parlamentar. Pelo contrário, é com base em ameaças, em não-ditos, em insinuações, em chantagem. Sempre há um aloprado à disposição. Parodiando Shakespeare, existem mais dossiês entre o Planalto e o Congresso Nacional do que imagina a vã oposição. A política nacional virou uma novela de quinta categoria, com um vilão, vários mocinhos e um final previsível: a não-apuração das denúncias, o governo incólume e a oposição sem rumo. É a desmoralização completa da política como espaço do debate de projetos, da apresentação de idéias e da discussão dos grandes problemas nacionais. Tudo se resume aos rompantes do presidente e às respostas cada vez mais tímidas da oposição. Neste cenário tranqüilo navega Lula rumo ao terceiro mandato ou, como disse estes dias, para "fazer o meu sucessor". Ou seja, é o vencedor nas duas hipóteses. Isso permite a Lula faltar constantemente com a verdade. Sabe que nesse cenário pode defender Severino Cavalcanti, dizer que o deputado foi vítima das elites e transformá-lo em mártir, uma espécie de frei Caneca do governo Lula. Pode elogiar Paulo Maluf e recebê-lo no Planalto, assim como fez com o ex-presidente Fernando Collor e com o "amigo" Renan Calheiros. Pode nomear Edison Lobão para o Ministério das Minas e Energia e dizer que não há nada que o desabone. Como se sua palavra fosse suficiente para estabelecer um julgamento - que já é uma sentença - sobre a honorabilidade de políticos que tiveram (e ainda têm) sérios problemas com a Justiça. Crê que os índices de popularidade são uma espécie de salvo-conduto, de que a ele tudo é permitido. Sente-se - e isso é um perigo para a democracia - um iluminado. Quando se espera uma atitude mais firme da oposição, eis que surge o governador de Minas Gerais, Aécio Neves. Está sempre de prontidão para colaborar com o governo. É uma espécie de curinga do presidente. Elogia Lula, fala dos "destinos de Minas" (que ninguém sabe quais são), cita seu Estado como exemplo de concórdia (onde, estranhamente, busca uma candidatura única para a prefeitura de Belo Horizonte) e enfraquece a oposição. Tudo isso com uma linguagem despolitizada e vazia. São desconhecidas suas opiniões sobre os principais temas nacionais. Entendam-se opiniões consistentes, não a mera repetição de chavões marcados pelo senso comum. É dentro desse quadro de anomia política que deve ser situado o episódio dos cartões corporativos. O governo negou, protestou, mas foi desmascarado pois o dossiê existe. E pior: tinha sido anunciado pela sua liderança no Congresso, que exigiu que a CPI fosse retroativa até 1994 (entre as lideranças, mais uma vez, não se ouviu a voz da líder do governo, a senadora Roseana Sarney, a silenciosa). Portanto, o dossiê já estava pronto antes da divulgação do escândalo dos cartões corporativos. E tudo indica que a fonte originária tenha sido a Casa Civil, onde dezenas e dezenas de DAS (funcionários de confiança que são quadros profissionais do PT) estão lá alocados para realizar esse tipo de "trabalho". Evidentemente que a ministra-chefe dirá até o final da vida que nada sabia, assim como sua adjunta. Mas o dossiê do Planalto é "peixe pequeno" frente ao que ocorrerá daqui para diante. Foi só uma espécie de anúncio, de abre-alas (já que somos o país do carnaval). Até outubro de 2010, o país vai ser invadido por dossiês de todos os tipos. Será a campanha mais violenta, agressiva e despolitizada da história republicana. Este é o cenário ideal para o governo eleger seu sucessor. A oposição considera como certa a vitória em 2010, assim como imaginou que Lula seria derrotado facilmente em 2006. Vê com enfado que pouco mais de dois anos ainda a separam da vitória. Acredita que agora é hora de manter a calma. Qualquer ação mais agressiva contra o governo pode ser danosa (assim como na época do ministro Palocci, quando diziam que ele era a âncora do governo e a garantia da governabilidade. O ministro caiu e nada aconteceu na economia.) O Planalto continua satisfeito com a oposição. É a que todo governo gostaria de ter. Enquanto isso mantém a ofensiva política, amplia os gastos dos programas sociais, usa qualquer cerimônia como palanque eleitoral e consolida as alianças para 2010. E ameaça, sempre ameaça a oposição. O regime militar usou e abusou do Inquérito Policial Militar (IPM). Os acusados nem sequer conheciam o teor do inquérito. Era uma farsa que tinha como principal objetivo coagir o opositor. Mas inquérito dá muito trabalho e ainda o acusado tem de ser ouvido. O governo Lula inovou. Criou uma forma mais ágil: os dossiês. Estes acabaram se transformando em política de governo. Lula deixará para seu sucessor uma herança maldita: a desmoralização dos valores republicanos. * Marco Antonio Villa, historiador e professor de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos, é autor, entre outros livros, de Jango, um Perfil SEXTA, 28 DE MARÇO Jogo de Palavras É revelado que, antes da abertura da CPI dos Cartões, o governo já havia ordenado que se montasse um dossiê com dados da gestão FHC. A ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, negou se tratar de um dossiê, afirmando que foi compilado apenas um "banco de dados".

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