No rastro da memória

Eles perderam o rumo de casa e não conseguem voltar sozinhos. As famílias estão à procura

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Por Monica Manir
Atualização:

IDIA DE ARAUJO SILVA Talvez ela não saiba disso. Talvez saiba. Mas amanhã dona Idia fará 73 anos. Faria. Não sei. Alguém sabe? Dona Idia desapareceu no dia 31/12/2006, em Ubatuba, litoral de São Paulo. Luiz, o filho, botou a malinha dela no carro. Iam virar o ano na Praia da Fortaleza com a família da nora. Dona Idia estranhou o lugar. Não era Bauru. Ou era? Cadê a casa da Cidinha? No sábado ela deu uma escapada da casa. O filho a alcançou cem metros longe. No domingo chovia a cântaros. Ubatuba, Ubachuva. Os adultos estavam encafuados na cozinha e na copa; as crianças, na sala. Dona Idia pegou uma sombrinha, abriu a porta e saiu. Com a roupa do corpo, saiu. Com um vestido rosa, uma sandalinha moleca preta e uma sombrinha sem cor definida, saiu. Alguém diz tê-la visto no ponto de ônibus. Saíram em desabalada pelo trajeto do circular. No ponto final, no centro, perguntaram pro motorista sobre uma senhora assim, de cabelo curto, mais pra gordinha que pra magrinha, de nome Idia, conhecida como Ilda, devem ter errado no cartório de Bauru, vestido rosa, sandália moleca preta, com uma sombrinha da mãe da nora, meio esquecida, toma um remedinho pra memória, mas ainda está boa da cabeça, o senhor deve ter visto, não? Não, o motorista não viu. Muitos velhinhos pegam o circular. Ninguém pede carteirinha do idoso nem nada. Vêem a pessoa no ponto, abrem a porta, fecham a porta e foi-se. Pior é que, ali, ficava o terminal rodoviário. Tinha ônibus saindo pra tudo que é lugar. Cidinha, cadê a Cidinha? A filha do meio soube do sumiço de dona Idia no dia 1º, às 4 da tarde. Partiu para o litoral na angústia maior dos mundos. Havia 15 anos que a mãe morava com ela. O Alzheimer chegou fazia três anos, mais ou menos. Quer dizer, Alzheimer Alzheimer mesmo, só dá pra saber depois que a pessoa morre. O diagnóstico é feito por exclusão de outras demências. Mas o médico disse que o mal que afetava dona Idia era aquele descoberto pelo doutor Alois Alzheimer, daí o nome alemão. O distúrbio a fazia repetir como um cuco o que já tinha dito havia poucos minutos, a esquecer quatro bocas do fogão acesas quando cozinhava feijão, a dizer no meio do banho: "Quem é você?", desse jeito, de repente, num branco sem sentido. Cidinha a deixava pegar o ônibus em Bauru para a casa da irmã, mas seguia o circular de carro. Na volta, a irmã ligava e ela ficava esperando escondida atrás da janela até a mãe entrar. A desmemória começou depois de uma depressão que dona Idia sofreu com a separação do segundo marido. Deixou de ir ao Clube da Vovó, onde ele era sanfoneiro, e se fechou aos poucos. A enfermeira Ceres Ferretti, que orienta famílias de pacientes com demência no Núcleo de Envelhecimento Cerebral, na Unifesp, diz que a depressão pode ser gatilho importante da doença quando o episódio depressivo acontece pela primeira vez na terceira idade. É uma avaliação que está em estudo. A doença é puro estudo. Cidinha correu as praias a pé espalhando cartazes, mandou 2 mil cartas, uma delas para o Clodovil, outra para o Agnaldo Timóteo, peregrinou por casas de repouso, hospitais, IMLs. Mas sua intuição a leva a crer que a mãe esteja trabalhando de doméstica em casa de família bem situada, como fez quando jovem. Se a doença é um retrocesso à juventude, eis um possível. Cidinha quer centrar fogo no Guarujá. Um sonho "praticamente real" a fez flutuar sobre uma casa na colina, de portão fechado, forrada de pedras típicas do litoral. No sonho, a mãe diz: "Me procura, vem me buscar". O som de pratos do bar/restaurante/lanchonete da filha bate ao fundo. Cidinha bota os pés no chão: "Sabe o que é uma situação desesperadora?" PAULINO DE OLIVEIRA Seu Paulino é reincidente. Da primeira vez que desapareceu, disse que ia à casa de um amigo perto de onde morava, na Vila Proost de Souza, em Campinas. Eram 11 da manhã. A polícia o encontrou às 4 da tarde em um bairro próximo dizendo que queria voltar para Campinas. Saiu andando e esqueceu de onde partiu, desorientação marcante da fase inicial da doença. Melhor que não dirigia. Carro na mão de portador de Alzheimer precisa de uma peça desconectada de propósito para não sair da garagem. Da segunda vez, seu Paulino aproveitou um cochilo da mulher na hora de pôr o lixo para fora e se mandou. Andou até cansar. Estava sentadinho no chão quando o Samu passou. No pronto-socorro, foi acometido de um insight. Lembrou que tem um filho chamado Paulo e deu o telefone dele. Alívio geral entre os Oliveiras. Passou bem um ano quando desapareceu em definitivo, no dia 27/8/2005, por volta das 5 da tarde. Já mostrava sinais de agressividade, especialmente se queria sair e não podia. "Dona Maria, por que a senhora me prende aqui?", gritava para a mulher, de nome Angelina. Desejava voltar à moradia onde passou a infância, no bairro da Casa Verde, em São Paulo. No dia da fuga, dona Angelina tinha trancado a porta antes de sair. Provavelmente com uma chave reserva, seu Paulino ganhou a rua, não sem antes passar o cadeado no portão. A família teve de chamar o chaveiro. Quando entraram, os quatro botões do fogão estavam ligados. Parece que seu Paulino tinha combinado a arte com dona Idia. Aposentado desde os 48 anos, o metalúrgico de 81 sempre andava com a carteira de trabalho no bolso. Tem uma mancha de queimadura na barriga, quase imperceptível com o arcar da idade. A polícia ligou outro dia querendo saber se ele tinha aparecido para dar baixa no B.O. "Deu vontade de dizer: ?Mas são vocês que têm de dar conta do meu pai!?", comenta a filha Rita. A família já vasculhou a Casa Verde, mas nada resta ali do passado longínquo do patriarca. Descobriram várias casas em Campinas e região que abrigam três, quatro idosos apenas. Dão comida e teto e o pessoal vai ficando. A busca é insana: "Não tem coisa pior do que não saber se a pessoa está com frio, com fome, num buraco ou não", diz Rita. Com medo de ficar sozinha na casa da Proost de Souza, dona Angelina se mudou para São João da Boa Vista, cidade mais tranqüila onde mora outra filha e para onde levaria o marido, com quem viveu caprichosos 57 anos. OLINDA CONSENTINI Ela vestia roupa de roça: calça marrom, blusa clara com estampa imitando microflores, botinhas de camurça pretas de amarrar, lenço na cabeça, embornal com pão, café e, provavelmente, água. Levava os mantimentos para o filho Roberto, no sítio ao lado. Podia ter ido pelo meio do cafezal, mas uma testemunha a viu na estrada que contorna sua propriedade, em Jacutinga (MG). O embornal nunca chegou ao destino. Bem cedo nesse mesmo dia, 13/3/2007, a lavradora de 74 anos tomou o café com a filha, que mora no centro. Na frente de Maria ela engoliu o remédio à base de rivastigmina - uma das substâncias inibidoras da acetilcolinesterase, enzima que degrada um neurotransmissor com papel importante na memória. (Confesso que usei cola: de memória, não dá para escrever essa explicação.) O medicamento tenta retardar a evolução do Alzheimer, que, no caso de dona Olinda, caminhava - aparentemente - a passos curtos. Os clássicos lapsos de memória estavam ali, assim como a clássica pouca vontade de cuidar da higiene. Flávia, neta e afilhada, driblava isso passando um produto na cabeça de dona Olinda e dizendo que não tinha desculpa, vó, a senhora agora tem de tomar banho. "A gente levava tudo numa boa", afirma a neta. Flávia sabe, de cor, o rosário de cidades pelas quais a família perambulou para divulgar 5 mil panfletos: Campinas, Mogi Guaçu, Mogi Mirim, Aguaí, São João da Boa Vista, Águas da Prata, Vargem Grande, Casa Branca, Pinhal, Pouso Alegre e por aí afora. Nessa última, a neta foi chamada para reconhecer um corpo, mas a senhora morta não tinha o dedo mindinho da mão esquerda com a unha pela metade, macerado pelo descuido da avó numa engrenagem do engenho. Na casa do sítio e na cidade, tudo está como dantes: quartos montados, roupas no armário, remédios na gaveta. A neta sabe que a avó pode ligar e desligar o cérebro. Quando ligar, a esperança é de que se lembre de que nasceu em Santa Rita do Sapucaí, de que foi pra Jacutinga aos 14 anos, teve um namorado mas preferiu o Zé Consentini, pariu três filhos vivos, trabalhou na roça, tinha vaca, porco e galinha e mexeu com carro de boi. Por mais frágil que dona Olinda possa estar - e a doença tende a debilitar muito a pessoa, a ponto de torná-la completamente dependente -, esperam um sinal. Qualquer sinal. NATANIEL E LAURINDA MARTINS Dona Laurinda acha que, não fosse sua fé, já teria pirado. De vez. Com os filhos longe, são apenas ela, ele e Deus. Ele é seu Nataniel, 81 anos no domingo passado, ex-vendedor de livros da Casa Publicadora Brasileira, ex-marceneiro quando moraram nos Estados Unidos, atual ajudante-geral de dona Laurinda nos afazeres domésticos, portador de Alzheimer recém-encontrado em Campo Grande depois de fugir de casa. Seu Nataniel tinha avisado a mulher que ia buscar um toca-discos no muro de uma casa. Era mais um delírio, que não a preocupou: a porta estava bem trancada. Sabe-se lá com que ferramenta, seu Nataniel quebrou o cadeado e galgou o portão de 1,80 metro que dá para a rua. Entardecia e ele vagou a noite toda sob um frio miserável. A polícia o encontrou depois de 16 horas, a uns 15 quilômetros de casa, tiritando. Ele já havia se desnorteado tempos antes, quando os dois voltavam com compras que fizeram numa quitanda. Ela atravessou a rua, ele não. Trinta horas mais tarde, seu Nataniel foi achado sem compras, sem jaqueta e sentado num degrau de lava-rápido, de onde disse que não sairia sem o jantar. Culturalmente, lembra Ceres Ferretti, não temos o hábito de colocar no portador de demência uma identificação, como pulseira ou etiqueta, trazendo nome, endereço, telefone e a sigla DA, que um profissional da saúde identifica de pronto como doente de Alzheimer. No mundo desenvolvido, hoje com 18 milhões de indivíduos com demência e projeção de 37,7 milhões em 2050, já se estuda um sistema GPS de rastreamento. O Brasil tem cerca de 1 milhão de brasileiros com o distúrbio, sob perspectiva de esse número quase triplicar em 2050. Para não pirar, o que dona Laurinda fez foi reforçar o cadeado e colocar um sensor no portão. Também tenta não contrariar o marido. Se ele diz que os parentes mortos há anos ainda estão vivos, assim seja. Se a casa em que vivem, e que ele construiu, é dos sogros, dona Laurinda diz amém. Agora ele deu para ter saudade do sítio do avô, que fica na Água do Brejo, água de que dona Laurinda nunca ouviu falar em 58 anos de casados. Pelo menos ela localizou o cenário em que ele se encontra, algo fundamental para a convivência. Outro dia, num momento de paz, quando ela comentou sobre a tristeza que é essa doença, ele retrucou, num lampejo de tranqüilidade: "Não é tão ruim assim, eu como bem, durmo bem, não sinto dor nenhuma, está tudo bem, Laura". * Informações: monica.manir@grupoestado.com.br

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